Há cerca de uma semana e meia, Gabriel Mithá Ribeiro decretou que «o fenómeno histórico do racismo (tal como o da xenofobia) deixou de existir nas sociedades maioritariamente brancas ocidentais.» O autor é bastante eloquente em todo o seu artigo, terminando-o dizendo que o racismo é um «cadáver em putrefação» que deve ser sepultado.

No Sábado passado, saiu no Público uma reportagem sobre um teste engraçado para ver se brancos e negros eram tratados de igual forma por senhorios no momento de arrendar um apartamento. Pôs dois homens a tentar marcar visitas a apartamentos que estão para arrendar. Um com sotaque lisboeta e outro com sotaque de um país africano (mas perfeitamente fluente). E, surpreendentemente num país onde o racismo «é apenas um cadáver em putrefação», três dos cinco potenciais senhorios contactados evitaram mostrar o apartamento ao homem de sotaque africano.

Não sei o que pensam desta reportagem do Público, mas eu chamo-lhe bom jornalismo. Helena Matos, neste Domingo que passou, não ficou com a mesma ideia. Escreveu ela: «Note-se que o Público telefonou para cinco pessoas e a partir daí construiu uma tese. É caso para dizer que nunca se concluiu tanto com base em tão pouco. Mas o pior vem a meio do texto quando se sugere que os telefonemas de testing deveriam servir como prova nos processos por discriminação.»

Vamos por partes. Cinco senhorios é uma amostra pequena e, obviamente, não é para se construir uma tese científica à sua volta. Mas, ao contrário do que se possa pensar, não é assim tão negligenciável. Por exemplo, imagine-se que, de facto, o racismo está morto e que a generalidade dos senhorios, digamos que 90%, não faz qualquer discriminação. Então a probabilidade de numa amostra de 5 não encontrar mais do que 2 que tratam os telefonemas de igual forma é de apenas 0,8%. Zero vírgula oito por cento. Não dá para construir uma tese científica, mas dá para tirar algumas conclusões, não?

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Mas Helena Matos diz que o pior nem é o tamanho da amostra. O pior é chamar a isto um teste para aferir processos de discriminação. Helena Matos não propõe um teste alternativo, pelo que não sabemos o que terá em mente. Mas, na verdade, este método é muito usado na literatura científica para testar, precisamente, processos de discriminação. Por exemplo, os professores Douglas Massey e Garvey (University of Pennsylvania) fizeram um estudo com o título “Use of black English and racial discrimination in urban housing markets”.

Para o caso do título não ser suficientemente explícito, eu explico o que os autores fizeram. Dado que a etnia de uma pessoa pode facilmente ser inferida pelo sotaque, os autores pediram a pessoas de etnias diferentes que respondessem por telefone a anúncios de casa para arrendar. O estudo foi feito em Filadélfia e foram feitos 474 telefonemas a cerca de 80 senhorios. Não sei se Helena Matos considerará o método adequado nem se considerará a amostra suficientemente grande, mas a Urban Affairs Review, uma prestigiada publicação científica, considerou-o cientificamente válido. Caso contrário, não teria publicado o referido estudo.

Para deixar os mais desconfiados descansados relativamente ao método usado, valerá a pena referir que outros estudos usando métodos diferentes chegam, essencialmente, aos mesmos resultados. Por exemplo, John Yinger, professor na Syracuse University, num estudo publicado na American Economic Review, comparou o tratamento que era dado a brancos e a não brancos nas visitas que faziam às casas. Como se trata de visitas presenciais, esta metodologia poderá responder à objecção do deputado Carlos Abreu Amorim, que disse não perceber como por telefone se via “o tom de pele” da pessoa.

Neste estudo, os dados foram suficientemente ricos para que o investigador pudesse perceber uma das principais causas desta discriminação: as empresas de arrendamento evitavam os negros para evitar perder os seus actuais ou potenciais clientes brancos.

É provável que quem tenha lido o livro Freakonomics, da autoria de Stephen Dubner e Steven Levitt, esteja a lembrar-se de ter lido a descrição de uma experiência parecida com estas. E, na verdade, a memória não estará a pregar nenhuma partida. Nesse livro é descrito um estudo de Marianne Bertrand e Sendhil Mullainathan (professores no MIT e na Universidade de Chicago, universidades reconhecidas pelo seu pensamento marxista). Estes autores responderam a mais de 1300 anúncios de emprego enviando pelo correio CVs falsos. A ideia, como já terá adivinhado, era responder aos anúncios mandando CVs praticamente idênticos, mas com uma diferença crucial: o nome de quem se candidata ao emprego. Nuns casos os nomes eram tipicamente brancos (Emily, Allison, Matthew ou Geoffrey) e noutros eram nomes tipicamente adoptados por negros (Aisha, Ebony, Jamal ou Tyrone). Os resultados? Penso que conseguirá adivinhar: os nomes brancos tinham uma probabilidade 50% superior de serem chamados à fase seguinte do processo de recrutamento.

Como dizia Ellen McGrattan, uma professora que conheci nos Estados Unidos, há coisas em que acreditamos com o coração e depois há a ciência. Gabriel Mithá Ribeiro parece acreditar que nas sociedades maioritariamente brancas não há discriminação racial e Helena Matos parece pensar que tudo não passa de uma conspiração da esquerda para prejudicar Passos Coelho, mas os factos mostram que, seja por telefone, por carta ou em pessoa, os negros são mesmo mais mal tratados do que os brancos.