O governo completou seis meses e os foguetes estalaram como se tivesse concluído uma legislatura. O que se compreende: sem foguetório não é possível iludir o faz-de-conta em que vivemos. Sem foguetório não é possível iludir que estamos hoje pior do que há seis meses. Sem foguetório não é sobretudo possível mascarar que neste processo nos estamos a despedir do que foi em tempos um partido moderado e reformista, o Partido Socialista.
A economia, sempre a economia
O que está a correr pior é, sem surpresa, a economia. Porque sucedeu exactamente o contrário do prometido. O ritmo de crescimento económico abrandou. Não foram criados empregos, antes foram destruídos postos de trabalho. O investimento estancou. E o consumo, o prometido “motor” da retoma, não dá suficientes sinais de vida.
Os títulos e alguns dos destaques dos mais recentes relatórios do Instituto Nacional de Estatística são reveladores: Índice de Vendas no Comércio a Retalho desacelerou em termos homólogos (Março de 2016). Índice de Produção Industrial registou variação homóloga negativa (Março de 2016). Indicador de Confiança dos Consumidores diminuiu, “interrompendo a tendência ascendente observada desde o início de 2013” (Abril de 2016). Indicador de Actividade Económica estabilizou em fevereiro (após ter desacelerado nos dois meses anteriores). As exportações diminuíram 3,9% (Março de 2016).
Quanto ao desemprego, os números do primeiro trimestre de 2016 indicam uma subida para 12,4%, depois de ter atingido um mínimo de 11,9% no último trimestre antes das eleições. Mais preocupante ainda é a evolução da população empregada: menos 62 mil postos de trabalho desde Setembro, sendo que só no primeiro trimestre deste ano desaparecem 48 mil empregos.
Mas há mais. Em 2015 a economia portuguesa cresceu 1,5%. Era esse o ponto de partida de quem nos prometia “reverter o empobrecimento”. Em 2016 há cada vez menos gente a acreditar que se possa sequer repetir esse número. O que não surpreende, se nos lembrarmos de como evoluíram as previsões: as contas dos economistas do PS apontavam para um crescimento de 2,4% em 2016, o Programa do Governo desceu essa previsão para 2,2%, o “esboço” de Orçamento encolheu-a ainda mais para 2,1%, e depois ainda caiu para uns ainda assim irrealistas 1,8%. Fora da bolha em que parece viver o ministro das Finanças, os números são outros, oscilando entre os 1,3% previstos pela Universidade Católica, os 1,4% do FMI e os 1,5% do Banco de Portugal e da Comissão Europeia.
Pior, bem pior: os dados do crescimento económico do primeiro trimestre são péssimos, apenas 0,8% em termos homólogos. Nenhuma previsão era tão pessimista. Para chegar ao crescimento previsto pelo Governo, seria preciso crescer nos próximos três trimestres a um ritmo que Portugal já não conhece desde o ano 2000.
Mas não é isso que deverá acontecer, pois tudo indica pois que este ano nem sequer se alcançará o crescimento do ano passado, até porque Portugal – ou melhor, o Governo de Portugal – tudo está a fazer para que isso não suceda. Basta ver como têm evoluído os juros e o risco da nossa dívida por comparação com os dos países que, como nós, beneficiam da agressiva política financeira do Banco Central Europeu. O retorno para os investidores da dívida portuguesa teve, no primeiro trimestre de 2016, o pior desempenho de toda a zona euro, sendo que a percepção de risco, calculada pelo Deutsche Bank a partir do prémio associado aos seus Credit Default Swaps, é mesmo a maior da Europa.
Expectativas mínimas, clientelas máximas
A percepção deste desastre anunciado já obrigou a geringonça a adaptar o seu discurso e a baixar as expectativas. Agora tudo se resume a “recuperar rendimentos dos portugueses”, uma lenga-lenga que Catarina Martins está sempre a repetir e que agora é retomado na moção de António Costa ao Congresso do PS, iludindo que esse caminho se iniciou em 2015 e de forma mais equilibrada (e sustentada) do que a prevista para 2016. Basta pensar que o esforço orçamental este ano, graças à geringonça, vai “devolver” muito mais dinheiro aos funcionários públicos com os salários mais elevados do que aquele que vai gastar com o descongelamento das pensões mais baixas. De resto, temos agora uma nova austeridade, mas “de esquerda”, uma austeridade que consegue a proeza de ter actualizado as pensões mínimas num valor inferior ao praticado nos anos da “austeridade de direita”. São escolhas, mas escolhas significativas.
Numa altura em que estamos todos à espera de um “plano B” que nos trará mais carga fiscal – para além da que já chegou através de várias impostos indirectos –, ouve-se cada vez menos repetir a ideia do “virar de página da austeridade” e, em contrapartida, percebe-se cada vez melhor que isso significou, antes do mais, ir ao encontro da principal clientela da geringonça: a administração pública e os seus sindicatos. Mais os sindicatos das empresas públicas, aqueles cuja proteção levou à precipitada reversão das concessões das empresas de transportes públicos. São eles os que estão a ganhar – os únicos que estão realmente a ganhar. É a eles que António Costa nunca sabe dizer “não”.
Um exemplo recente desta escolha é a forma como o Governo, pressionado pelos partidos à sua esquerda, se virou contra os colégios privados com contratos de associação, alterando uma política que foi a de sucessivos governos do PS. Pense-se só no seguinte: o argumento principal dessa medida é o da necessidade de gerir bem os recursos públicos, mas em nenhum momento se disse quanto vai custa realmente uma turma numa escola pública – isto é, qual o seu custo real, com todas as despesas incluídas, não apenas o custo de acrescentar aqui ou acolá dois professores.
Na verdade, o que realmente conta nesta viragem na política educativa é a submissão à agenda da Fenprof, que tem imenso poder nas escolas públicas e não entra nas escolas privadas. Não ganham os alunos nem as famílias, que preferiam poder escolher, não ganha o contribuinte, pois a solução acabará por sair mais cara (sai sempre), mas ganham as clientelas dos sindicatos. E com elas ganha a CGTP, que percebeu muito bem o que podia lucrar com o acordo da geringonça e o defendeu no interior do PCP.
A degenerescência do PS
Ao optar, desde o primeiro minuto, por se virar para a sua esquerda, o PS não se distanciou apenas de quatro anos de governação cuja principal marca, a austeridade, fora uma consequência da sua irresponsabilidade e um corolário de um acordo que o próprio PS assinara com a troika. Ao fazê-lo, o PS também não se limitou a “derrubar um muro” e a trazer para o espaço da governação partidos que, nos primeiros 40 anos da nossa democracia, sempre estiveram contra tudo e contra todos. Com este movimento o PS vendeu a sua alma de partido moderado e reformista, ao mesmo tempo que desistiu de ser um grande partido com capacidade de governar sozinho com a sua agenda, não com a agenda de outros.
Diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és, e assim sucedeu. As companhias escolhidas pelo PS, o acordo que com elas assinou, implicaram em primeiro lugar um programa de Governo que só por anedota podemos dizer que segue as linhas e a estratégia definidas no programa que o PS apresentou aos eleitores. Este possuía uma coerência interna que, podendo gerar acordo ou desacordo, tinha lógica. Hoje tudo foi substituído por sucessivos remendos contraditórios.
Mas há mais e há pior, e isso é transparente na moção que o líder apresentou ao congresso que o vai reeleger: os socialistas abdicaram das reformas, preferindo um autismo suicida bem evidente na reacção de António Costa às palavras de Mario Draghi na reunião do Conselho de Estado. Um autismo que chega a ser malcriadamente gritante na forma com que alguns deputados de primeira linha se têm referido a críticas vindas de instituições respeitáveis, como o Conselho de Finanças Públicas. Um autismo que contrasta com o caminho reformista de outros governos socialistas, como o de Manuel Valls em França ou Mateo Renzi em Itália.
O PS de hoje não acredita na sociedade – apenas vê soluções no Estado e nos seus “simplexes”. O PS de hoje não acredita na economia – apenas têm esperança que a longa mão do Governo saiba distribuir os fundos que julga poder captar dos planos europeus. O PS de hoje não se preocupa com as empresas, com os bloqueios do mercado de trabalho ou com a sustentabilidade da Segurança Social – adopta antes o discurso da extrema-esquerda contra os mercados e a “precariedade”. Este PS pouco se distingue do Bloco de Esquerda, pois é um PS que não imagina vida fora do Estado, nem está pronto a confiar no livre julgamento dos cidadãos.
No rescaldo das eleições de que resultaria a geringonça, uma das raras vozes socialistas que se opôs à solução, a de Francisco Assis, citou Norberto Bobbio para sublinhar que “tão ou mais importante que a dicotomia direita-esquerda [é] a contraposição entre moderados e extremistas em cada um destes campos políticos”, sendo que no “caso europeu não há a mais pequena dúvida de que a grande linha de demarcação é precisamente esta última”.
Seis meses depois ainda tem mais razão do que nesses dias quentes de Outubro. Primeiro, porque vimos o PS derivar para um discurso quase, quase anti-europeu, um discurso tão próximo do do Syriza que permitiu uma declaração conjunta, um discurso tão próximo dos populismos extremistas que utiliza o confronto com Bruxelas para justificar as malfeitorias de uma austeridade que, pelo que estamos a ver de desempenho económico, só vai acabar num plano B, e num C, e num D, tal como em 2010/2011 fomos andando de PEC em PEC até ao famoso PEC IV.
Depois, e mais importante, porque o radicalismo cresceu dentro das fileiras do próprio PS, deixou de ser marginal e está hoje sentado na primeira fila da sua bancada parlamentar ou à frente das principais estruturas do partido. Quem domina o discurso mediático (e ideológico) do PS são figuras que podiam estar no Bloco, algo que está a deixar justificadamente preocupados os moderados que ainda existem dentro do partido.
Não é impunemente que se faz e repete à exaustão um discurso radical – quando chega a altura de enfrentar a realidade, como já está a suceder, o discurso alternativo é o dos bodes expiatórios. Bruxelas, o anterior Governo, a troika, o Banco de Portugal ou o Banco Central Europeu passam então a ser os maus da fita, mesmo que não sejam eles que tomaram as opções políticas que estão a fazer o país andar para trás.
A fome de poder e o cimento do poder
O protagonista e o fautor desta viragem foi um político que se revelou alguém em quem não se pode confiar. António Costa vendeu a alma do PS para salvar a sua: na noite das eleições, quando se tornou claro que a sua derrota era total – perdera em votos para a coligação, perdera em número de deputados para o PSD, tivera até um resultado “poucochinho” que desta vez nem dera para chegar em primeiro lugar – percebeu que ou fazia o pino, ou acabava ali a sua carreira política. Preferiu fazer o pino e esquecer os princípios.
De então para cá muitos têm elogiado a sua capacidade de negociação. Mal: o “grande político” que ia levar o PS a um resultado histórico não precisou nunca de ser um grande negociador para conseguir o que conseguiu.
Primeiro, não é difícil montar uma geringonça quando as diferentes partes estão unidas no essencial: impedir que governe quem ganhou as eleições. É esse o cimento essencial da coligação, o resto são detalhes.
Depois, não é difícil negociar quando se está disposto a abdicar do núcleo essencial do programa eleitoral e, do outro lado, existe a mesma fome de chegar ao poder (ou de conservar o poder, o que foi fundamental no caso do PCP/CGTP).
Finalmente, também não é difícil negociar em Bruxelas quando se está disponível para ter entradas de leão e saídas de sendeiro, que foi exactamente o que aconteceu com o Orçamento de 2016.
Nada disto é muito novo – ter ou não ter o poder sempre foi o que motivou muitos políticos – e nada disto nos devia surpreender depois de ter assistido ao que assistimos na Grécia, onde o radicalíssimo Syriza acabou a aplicar mais austeridade que os governos anteriores com a agravante de, no entretanto, ter dado cabo dos poucos sinais de recuperação que a economia começava a dar. Apesar das suas origens distintas, Costa é muito mais parecido com Tsipras do que parece, pelo que é bom não ter ilusões: tal como o líder radical grego aplicará as medidas que Bruxelas, mais tarde ou mais cedo, o obrigar a aplicar, subirá os impostos que tiver de subir, e ao mesmo tempo invectivará Bruxelas as vezes que isso for politicamente conveniente.
Espere-se por isso tudo e o seu contrário, e durante bastante tempo, pois esta é uma coligação de fracos, porque de derrotados, mas unida pelo cimento do poder e do seu exercício. Não vai descolar ao primeiro abanão.
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