Contra a descrença de alguns, felizmente poucos, o Estado afinal esteve à altura dos acontecimentos em Pedrógão Grande. O Presidente da República esteve soberbo. Oito dias depois de ter assegurado que fora feito o possível na segurança dos cidadãos, apareceu a exigir que se apurasse “tudo, mas mesmo tudo, o que houver a apurar”. Um burgesso julgaria que a investigação precede as conclusões, mas espíritos superiores do calibre do prof. Marcelo não se deixam tolher pelas amarras do senso comum. Pelo meio, ainda arranjam tempo para atender a uma festança beneficente, faltar aos funerais das vítimas e distribuir abraços comovidos e comoventes a 381 transeuntes – fora os que conseguiram fugir.
O primeiro-ministro esteve impecável. Em vez de explicar, como os fracos, o dr. Costa exigiu explicações. Em vez de dar respostas, como os pelintras, o dr. Costa fez perguntas. Em vez de pedir desculpas, como os malucos, o dr. Costa pediu um “focus group” para avaliar o impacto dos fogos na sua imprescindível popularidade. E sempre com um perpétuo ar compungido, que só interrompeu para participar, aos saltinhos, no “lançamento” de um indivíduo obscuro – e certamente prodigioso – à câmara de Lisboa.
A ministra da Administração Interna esteve excelente. Chorou imenso, o que é prova cabal de sensibilidade. Nos (curtos) intervalos, declarou que: 1) o incêndio de Pedrógão Grande foi um grande incêndio; 2) aquele foi o pior momento da vida dela; 3) não se demite na medida em que a demissão seria o “mais fácil”, e que prefere “dar a cara”. A cara lavada em lágrimas, escusado recordar.
O Bloco de Esquerda esteve magnífico. De início, ao pedir chuva em lugar de demissões. De seguida, ao descobrir que a culpa dos incêndios é dos eucaliptos, que os eucaliptos foram uma invenção de Salazar e que os capitalistas da celulose querem calcinar o país inteiro. Ficou claro que o conhecimento do dr. Louçã & Cia. em matéria de fogos florestais rivaliza com a erudição que demonstram na economia e, de resto, em qualquer assunto que se dignem abordar. Avisado, o governo apressou-se a proibir o eucalipto, em forma plantada ou tentada.
O PCP esteve fabuloso. Perdida a liderança do combate ao eucalipto para o BE, os comunistas desprezaram Pedrógão Grande e mantiveram-se focados nas autênticas prioridades nacionais, leia-se uma greve dos professores convocada para fingir que a classe está descontente.
O parlamento esteve irrepreensível. Os partidos aprovaram uma comissão de especialistas, metade dos quais a nomear pelo dr. Ferro Rodrigues. Elogiar isto seria redundante.
A Protecção Civil esteve fantástica. Dotada há três meses de novas chefias, muitas sem experiência na matéria de modo a refrescar aquilo, a entidade não serve apenas para emitir avisos coloridos: também serve para confundir as calamidades ao adoptar procedimentos caóticos e avulsos. Num instante, o método “andar à nora” (jargão técnico) fintou as expectativas das chamas e mostrou-lhes quem manda.
O famoso SIRESP esteve imaculado. Após numerosos testemunhos de que esta luminosa herança do dr. Costa não funciona, um relatório isento, realizado por uma empresa acionista do próprio sistema, concluiu o contrário.
Os helicópteros Kamov, outra negocia… desculpem, benesse do dr. Costa estiveram formidáveis. Não saíram do chão, logo não são suspeitos de nada que se relacione com a tragédia.
Os “media”, salvo ligeiros deslizes, estiveram estupendos. Às primeiras notícias funestas, correram a auxiliar os que mais precisavam: o dr. Costa, a ministra e as metástases do poder. Raramente se assistiu por cá a acção de solidariedade tão coordenada.
O facto é que, apesar de toda a perfeição acima descrita, em Pedrógão Grande morreram, que se saiba, 64 pessoas, além das centenas de feridos, desalojados e desgraçados em geral. Culpados? A tese oficiosa foi evoluindo. Começou por se desconfiar de uma árvore (radicalizada e já devidamente referenciada pelas autoridades). Partiu-se para a crítica à natureza, que nunca, nunca, nunca na História da Terra se manifestara com tamanha violência. Prosseguiu-se com a acusação dos jornais espanhóis que não veneram a competência do dr. Costa e, movidos pela inveja, acham o nosso Estado um atraso e uma vergonha. Finalmente, chegou-se a um consenso, aliás previsível: a culpa é de Pedro Passos Coelho, que confiou num boato, permitiu-se uns comentários sobre eventuais suicidas na região dos incêndios e, para cúmulo, desculpou-se pelo erro.
De súbito, o tipo de gente que passou anos a misturar jovialmente suicídios e “austeridade” esfregou as mãos e aproveitou a deixa. Não é que essa gente precisasse, mas enfim dispunha de um “pretexto”, grotesco que fosse, para ignorar a incúria, a corrupção, a demagogia, a incompetência, o descaramento, a prepotência e o desrespeito dos, digamos, “responsáveis”. Para alívio colectivo, o horror talvez criminoso de Pedrógão Grande expiou-se numa frase infeliz. E, sem surpresas, os seus autores preparam-se para sair impunes: o “focus group” determinou que a popularidade do dr. Costa não sofreu abalos. No fundo, é que importa.