Em Orlando, Florida, tivemos mais um ataque à nossa forma de vida e à nossa liberdade. Esta parece ter sido uma constante nos últimos tempos e é, de certa forma, diferente dos ataques que tivemos no 11 de Setembro, já lá vão 15 anos. Em 2001, os alvos dos terroristas islâmicos eram bem definidos: o sistema financeiro (com o ataque às torres gémeas), o sistema militar (com o ataque ao Pentágono) e o sistema político com o presumível ataque à Casa Branca (abortado pelos passageiros do famoso voo 93).

Em Paris, em Janeiro do ano passado, o ataque ao jornal satírico Charlie Hebdo foi um ataque contra uma das principais liberdades da civilização ocidental: a liberdade de expressão. No caso, a liberdade de fazer ‘cartoons’ ofensivos. Na altura, todos condenaram o ataque, mas muitos condenaram também a publicação por ser tão ofensiva. Lembro-me, por exemplo, de Ana Gomes se indignar com publicação das caricaturas de Maomé e do Papa Francisco dizer que a liberdade de expressão não podia servir para brincar com a religião dos outros. Para ter a certeza de que não era mal-entendido, explicou mesmo que alguém que insultasse a sua mãe poderia contar com um murro.

O ataque ao Bataclan, em Novembro do ano passado, foi também um ataque à nossa forma de vida. A liberdade de sair à noite, de ir a um concerto, de dançar. A ausência de um alvo determinado fez de nós todos, potenciais vítimas. Que me lembre, nas condenações a esse ataque não houve qualquer “mas”, tal como não houve nos atentados terroristas nos transportes públicos de Madrid, em 2004, de Londres, em 2005, ou de Bruxelas, em 2016.

Aparentemente, em Orlando, temos o mesmo que tivemos no Bataclan. Um ataque à nossa liberdade, à nossa forma de vida, ao nosso direito à diversão e à dança. Que tenha dado conta, nas condenações a este atentado não existem “mas”. Contudo existe outra coisa, um silenciamento sobre a natureza do alvo deste atentado. O ataque em Orlando foi um ataque homofóbico, ou seja, de ódio aos homossexuais. Um ataque a uma comunidade que, mesmo no mundo ocidental, apenas recentemente ganhou o direito legal a ser livre. Isso é silenciado com o argumento, aparentemente bondoso, de que não interessa se eram homossexuais. O que interessa é que eram pessoas. Mas uma coisa não é separável da outra. Não podemos olhar para o indivíduo e esquecer a sua identidade. E se se confirmar que o autor deste atentado terrorista é também homossexual, nada do que escrevi é invalidado. Pelo contrário, é apenas uma ilustração dramática de como grande parte da homofobia vem do medo que algumas pessoas têm de ser homossexuais.

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Quando, em 2014, a organização terrorista Boko Haram raptou centenas de raparigas de uma escola na Nigéria, não havia como não reconhecer que a sua condição feminina as tornou num alvo específico. Em 2015, quando os terroristas de Al-Shabaab quiseram identificar os cristãos que viajavam num autocarro para os matar — tendo sido salvos pelos muçulmanos que com eles viajavam — o alvo era também claro.

No ataque de Boko Haram, não fazia sentido dizer que não interessava se eram raparigas ou não. E, pelo contrário, todas as notícias falaram claramente do alvo em causa. No ataque de Al-Shabaab, o alvo do ódio eram os cristãos e as notícias, naturalmente, explicaram-no bem. Da mesma forma, também em Orlando não faz sentido esconder a especificidade das vítimas. Os três casos são atentados contra os direitos humanos, mas, em cada um dos casos, trata-se de um grupo específico que, num dado contexto, tem menos direitos, ou seja, é mais vítima. São seres que, em muitas sociedades espalhadas quer no tempo e quer na geografia, são humanos de segunda classe.

Este pudor em nomear de forma clara a identidade comunitária das vítimas deste ataque mostra que a homossexualidade ainda nos incomoda. E incomoda porque, na verdade, a homofobia é uma realidade nossa — caramba, não foi há muito tempo que tivemos a notícia de que há, em Portugal, hotéis que vedam a entrada a homossexuais, tal como há umas décadas havia hotéis que vedavam a entrada a pretos. Como dizia Tara O’Connor, uma cartoonista, no twitter: “As pessoas não querem admitir que a homofobia foi um factor porque isso significa que têm uma característica comum com alguém que matou 50 pessoas”.

Tara O’Connor disse ainda: “vocês querem culpar uma religião que não é a vossa, mas vejam como a vossa religião trata a comunidade LGBT”. E é verdade, também a Bíblia Sagrada, quer no Antigo quer no Novo Testamento, condena os homossexuais. E, claro, a prática da Igreja Católica a este respeito é a que é. Ver o pai de Omar Mateen a explicar em vídeo que o filho não devia ter matado os homossexuais porque “compete a Deus, e não aos servos, punir os homossexuais” é como vermo-nos ao espelho. Ouvimos o pai do terrorista e temos de perguntar: quantos de nós não pensam exactamente o mesmo?