Catarina Medeiros, 29 anos, sente que, se tem uma despesa extra, como cortar o cabelo, fica aflita até ao final do mês. “Começo logo a pensar que tenho mesmo de receber”, afirma a produtora audiovisual. O companheiro, Ricardo Rodrigues, 31 anos, é professor de design multimédia numa escola politécnica pública. Em janeiro, fez as contas e percebeu que, depois dos cortes nos salários e nos subsídios de férias e com os aumentos dos impostos, ganha em 2014 o mesmo que ganhava em 2009. Nos últimos dois meses, o casal não tem conseguido poupar, quando sempre o fez. O ano da saída da troika está a ser o mais desastroso para as contas desta família.
Durante os três anos da presença do FMI, BCE e Comissão Europeia em Portugal, Ricardo Rodrigues e Catarina Medeiros cortaram quase completamente no consumo de cultura, compram menos roupa, passaram a encher a despensa com produtos de marca branca, tentam aproveitar ao máximo as promoções e viraram-se mais para casa, tendo reduzido significativamente as saídas à noite e as idas aos restaurantes.
É provável que estas mudanças tenham acontecido em muitos lares portugueses. O relatório “Tendências de Mudança do Consumidor Português 2013”, publicado pelo Consumer Intelligence Lab, um laboratório especializado na análise de comportamentos de mudança do consumidor, identificava o “frugalismo”, a “redescoberta da casa e do espaço público” e a “sociedade discount” como algumas das tendências desenvolvidas pelos portugueses durante o período de austeridade.
José António Rousseau, presidente do Fórum de Consumo, diz que a crise foi responsável pela introdução de comportamentos mais frugais, obrigando os consumidores a “serem mais conscientes e a pensarem melhor as suas atitudes de compra”. Rousseau diz que a tendência para os portugueses ficarem mais em casa e reduzirem o consumo fora de portas está relacionado com o aumento do IVA de 21 para 23%, no início de 2011, mas também pela tomada de consciência de que é possivel “ter momentos de convívio com os amigos fazendo-o em casa.”
Em 2012, ao setor da restauração passou a ser aplicado o imposto sobre o valor acrescentado à taxa de 23%, o que significou um agravamento de dez pontos percentuais em comparação com o nível anterior. No ano seguinte, a Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP) registou uma quebra de 25% no volume de negócios do setor.
De acordo com a Kantar World Pannel, em 2013, pela primeira vez em Portugal, a procura no Google pela palavra “receita” atingiu o mesmo número de resultados que a palavra “restaurante”, uma das referências mais pesquisadas de sempre em todo o mundo. Esta curiosidade ilustra bem uma das tendências registadas durante a crise: a intensificação do consumo doméstico. Atualmente, em 40% dos lares prepara-se comida para consumir fora de casa.
Catarina Medeiros e Ricardo Rodrigues dizem ter cortado completamente nos almoços e jantares em restaurantes. O professor de design não leva almoço para o local de trabalho porque come na cantina da escola, o que acaba por sair mais barato, mas leva sempre lanche. Catarina prepara em casa as refeições que come fora. O casal, que sempre frequentou esplanadas e jardins, passou a embalar sanduíches e fruta para consumir ao ar livre.
Segundo José António Rousseau, outro dos comportamentos típicos deste período foi a substituição de um produto por outro mais barato. Algumas famílias substituíram o consumo de carne fresca pelo consumo de salsichas, aumentaram os consumos de arroz e de massas, mais baratos e nutricionais, e deixaram de preparar refeições mais completas, passando a comer sopas. Um estudo apresentado pela Kantar World Pannel durante a segunda edição do Fórum Consumo, em abril de 2014, mostrou que os pratos mais cozinhados pelos portugueses são, por esta ordem, sopa, arroz e saladas.
Na casa de Catarina Medeiros e de Ricardo Rodrigues não houve substituição de produtos, mas as compras ocupam, agora, mais tempo, estão mais dispersas e são muito influenciadas pelas promoções. O casal deixou de comprar carne e peixe nos supermercados e passou a frequentar os talhos e as peixarias. O professor descobriu que, nos mini-mercados indianos e chineses, dez euros são suficientes para comprar legumes e frutas para a semana inteira. Além disso, inscreveu-se nas newsletters dos supermercados. Durante a semana, passa por cinco estabelecimentos diferentes para conseguir aproveitar os descontos e comparar os preços dos produtos.
“O mercado português esteve ‘dopado’ com as promoções nos últimos dois anos”, diz José António Rousseau. Em momentos de crise, os consumidores “ficam mais sensíveis aos preços e procuram preços cada vez mais baixos”, diz, acrescentando que, até 2012, os preços baixos estavam associados às marcas brancas, mas que atualmente os fabricantes já fazem campanhas promocionais e oferecem preços mais reduzidos.
Um dos grandes fenómenos de vendas em Portugal durante este período foi o robô de cozinha Bimby. No final de 2013, o Wall Street Journal noticiava que tinham sido vendidas mais de 35 mil Bimbys em 2012, apesar de o preço deste aparelho corresponder, sensivelmente, a duas vezes o salário mínimo nacional.
Durante 2013, foram vendidas 37 mil unidades deste robô e, entre janeiro e abril de 2014, já tinham sido vendidas 12,4 mil. Nesse ano, surgiram no mercado produtos semelhantes produzidos por outras marcas, com preços mais baratos. Em 2013, as vendas de robôs de cozinhas dispararam 788%, segundo a GfK.
Ricardo Rodrigues sempre achou que seria capaz de “resistir e não comprar uma Bimby”, mas, um dia, aceitou assistir a uma demonstração para ajudar um amigo que queria ganhar um livro. Nessa altura, apercebeu-se do “potencial de poupança” e agora diz que há “o antes e o depois da Bimby”. Catarina Medeiros, que diz não ter jeito para a cozinha, acha que “quem não sabe cozinhar continua a não saber”. Mas o professor de design garante que poupa porque o robô permite, por exemplo, aproveitar pão duro ou fruta amolecida e transformá-los em pão ralado e sumos ou gelados. No entanto, pensa que a Bimby “não liberta as pessoas da cozinha”, ao contrário daquilo que é dito de forma promocional.
Na verdade, o casal já chegou a levar a Bimby para cozinhar em casa de amigos. A crise não afetou o convívio. Vão menos aos restaurantes, mas no fim-de-semana é frequente juntarem-se aos amigos e jantarem nas casas de uns e outros.
Ricardo Rodrigues acha, mesmo, que a crise acabou por aproximar os amigos e as pessoas em geral. “Pelo lado humano, foi bom. Tenho consciência do outro”. Se têm comida em excesso, é provável que acabem por dá-la aos amigos. Se não precisam de uma cadeira ou de outro móvel, emprestam ou dão. E também recebem.
Em julho de 2013, tiveram uma filha, Leonor. O casal está convencido que não foi a chegada de mais um elemento à família que desestabilizou o orçamento. Até porque, garantem, 80% das coisas que Leonor tem “são dadas ou emprestadas”. Neste momento, estão a emprestar a amigos que começam a ter filhos. No Natal de 2013, não precisaram de comprar uma prenda para a bebé porque foram recebendo muitos presentes durante o ano.
É como se falassem de um sistema em rede onde nada se desperdiça. A maior despesa que tiveram desde que Leonor nasceu foi a compra de um automóvel familiar. Nessa altura, deram o carro antigo à irmã de Ricardo e compraram, num site de compra e venda em segunda mão, um carro mais ou menos novo.
Sites como o OLX e o Custo Justo registaram um aumento substancial no volume de negócios durante os três anos da presença da troika. O OLX passou de cerca de 800 mil utilizadores em setembro de 2012 para mais de dois milhões em março de 2014. Em março deste ano recebeu quase 20 milhões de visitas. O site tem mais de 2,3 milhões de anúncios, divididos por 12 categorias. Já o Custo Justo, passou de 48 milhões de visitas em 2011 para mais de 78 milhões em 2013.
Como explica José António Rousseau, o aumento das vendas de produtos em segunda mão pode ser explicado pela tomada de consciência de que a falta de liquidez “pode ser suprida através da venda de produtos que adquiriram nos bons velhos tempos e de que já não precisam”. Para o presidente do Fórum do Consumo, este é, no entanto, um “fenómeno de moda e imitação”, sendo “natural que recue muito daqui a algum tempo”.
As mudanças que Catarina Medeiros e Ricardo Rodrigues fizeram ao longo destes três anos foram profundas, mas parecem dar-lhes segurança. O casal olha para o futuro e não consegue imaginar-se a ganhar mais do que aquilo que ganha agora. E, por isso, não consegue imaginar-se a consumir como fazia antes da crise. “Acho que nunca vou mudar esta estrutura de pensamento. Vou estar sempre preparado para que volte a acontecer”, diz o professor.
O casal não quer ser apanhado desprevenido. Não quer que lhes aconteça aquilo que sucedeu à geração dos seus pais. “Os meus pais não imaginavam não ter estabilidade financeira com esta idade. Viram tudo a evoluir, com a entrada na União Europeia”, lamenta Catarina Medeiros. “Quando voltar a acontecer, vamos estar muito bem preparados”, garante Ricardo Rodrigues, certo de que crises semelhantes vão voltar a repetir-se.
José Antonio Rousseau tem a mesma opinião. “Não vale a pena ter a ilusão de que, depois de passar esta crise, vamos viver um século sem crises”. Depois de 20 anos de intenso consumo, os portugueses viram-se obrigados a alterar os hábitos. Essa alteração, diz Rousseau, veio para ficar. “Não é conjuntural ou temporária. O consumidor interiorizou uma componente de dúvida relativamente ao futuro e vai manter a racionalização do consumo durante bastante tempo ou mesmo para sempre.”