Zero.
A bola que significa ausência. O nada que hoje, por causa de outra bola, que há-de começar a rolar às 17h daqui, é tudo. “O futebol está regressando a casa”, li num cartaz numa praça.
O relógio que ontem marcava um 1, “faltam 01 dias para a Copa”, hoje desapareceu. Resta a bola, sempre ela, com as cores do Mundial, a anunciar que Salvador é sede da Copa.
No Facebook, no mural de alguns amigos brasileiros, leio o entusiasmo, a ansiedade antes do início. No terreno, nas ruas da capital da Bahia, a realidade revela-se distante da virtual.
O Arena Fonte Nova recebe amanhã (Sexta-feira) o Espanha-Holanda, mas ainda há obras à volta do estádio. Não param de entrar e sair camiões. Os torniquetes estão envolvidos em plástico preto.
Junto à entrada principal, sentada num banco de plástico, Márcia vende (ou tenta vender) água, sumo, bebidas energéticas e cigarros. Há 20 anos que vende aqui. Por causa da Copa não vai poder vender nos dias de jogo, “porque a FIFA não quer”. Quem vende na rua terá de ir para o outro lado do Dique do Tororó, mas “tem de pagar 120 reais, então eu não vou, vou ficar sem trabalhar”.
O Dique do Tororó é um parque cultural icónico da cidade de Salvador. Tem relvados em torno de um lago bem grande onde repousam alguns orixás, os deuses africanos que correspondem a pontos de força da natureza. Seria de esperar que, em dia de arranque do Mundial, estivesse cheio. À hora de almoço, e há vários restaurantes no Dique, há muito pouca gente.
Um casal de espanhóis pergunta-me se sei onde podem conseguir bilhetes para amanhã. Não sei. Mas ficamos a conversar um pouco. “Estou muito espantado com a ausência de pessoas a venderem camisolas na rua. Já procurei e ainda não encontrei uma camisola de Espanha”, diz Diego, que estranha também a falta de entusiasmo na cidade.
Uma das explicações surge uns minutos depois. Vicente da Silva vende picolé (gelado) na rua há 40 anos. “A copa agora é só para os estrangeiros. Antigamente as pessoas nem iam trabalhar para assistir o jogo do Brasil, e podiam ir no estádio. Agora não”. Vicente lamenta a comercialização da Copa, o que, diz, “deixa triste o povo. Só ficaram os ingressos caros, para cima de 600 reais, baiano não tem condições não”. O salário mínimo no Brasil é 724 reais.
Do lado oposto à entrada principal do Arena Fonte Nova alguns turistas, sete, holandeses e alemães tiram fotografias, do lado de fora das grades que protegem o estádio, à estátua de Pelé. Alguns jornalistas contornam o estádio para recolherem imagens. Debaixo de um viaduto seis crianças de rua dormem em cima de plásticos transparentes. No meio da avenida de três faixas para cada lado há um posto improvisado da Polícia Militar. Do outro lado do estádio fica uma favela. São poucas as casas que têm a bandeira do Brasil na janela.
O taxista que me leva de volta ao hotel, Paulo Geovani Santos Sousa, “prefiro Geovani”, espeta mais uma alfinetada no Mundial. “A FIFA só organiza Copa em países pobres. Faz isso porque chega e impõe tudo o que quer”. Quanto à estranha ausência de festa a sério no país do samba, que tem a festa, precisamente, como imagem de marca, Geovani arrisca, “a gente nunca viveu uma copa, nem sabemos bem como é. Quem vem de fora é que faz a festa, porque eles sabem como é importante”. Ainda assim, “já ta aí, agora é aproveitar!”.
Com um intervalo de uma hora, mais coisa menos coisa, chove e estão 26 graus, às duas da tarde, em Salvador. “Está frio”, tinha-me dito Vicente da Silva, o vendedor de picolé.