Na rua do Ministério da Saúde, a realidade foge aos números que alguns avançam: “mil”, “dois mil” manifestantes. Mas entre médicos e utentes, que se juntaram ao protesto anunciado, erguem-se balões amarelos com as letras negras do “SNS” e cartazes da mesma cor com mensagens que invocam as 16 reivindicações do setor. As vozes aumentam de tom à medida que as intervenções se acendem. Ao nome de um governante, ouvem-se apupos. “Aqueles que querem que as consultas se tornem rápidas, de dez minutos”, diz a voz ao microfone. Seguem-se gritos de concordância.

A médica Sofia Silva, 27 anos, é das poucas que não está vestida de bata branca. Esqueceu-se dela no autocarro que a trouxe do Porto para a Avenida João Crisóstomo, em Lisboa. Enquanto a voz do microfone desfia críticas, ela tira fotografias às três colegas que tiveram melhor memória que ela, e portanto estão de bata. “Falo, mas não quero fotografia”. As colegas recusam participar na conversa. Sofia Silva é especialista em Medicina Geral e Familiar e dos poucos anos de profissão traz já um punhado de histórias para contar que em nada “dignificam a profissão”.

“A Unidade de Serviço Familiar (USF) Serpa Pinto, no Porto, mudou de instalações depois de funcionar 13 anos num edifício sem janelas”, conta. A mudança seria para melhor. E até foi feita “por médicos, enfermeiros e funcionários, porque não foram disponibilizadas carrinhas para mudanças”. Mas, depois, continuaram as dificuldades. “Não há computadores em todas as salas, o sistema informático é pesado e a nossa internet não o suporta. Temos falta de coisas básicas como um tinteiro de impressora, que temos de partilhar entre colegas”.

Problemas que, afirma, vão sendo supridos por todos os profissionais, mas que, a subsistirem com as reformas anunciadas pelo Governo, “tornam a profissão cada vez mais difícil”. “Trabalhar com a contratação de indicadores significa ter que cumprir mais com menos dinheiro. E as regras não são negociáveis”, explica. Depois “há o problema da reestruturação das carreiras”. “Não é pela recompensa económica. Se não nos sentirmos validados e se não houver progressão, acaba-se a motivação que hoje nos faz trabalhar horas a mais”.

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No microfone a voz diz “porque muitos médicos estão a emigrar”. E Sofia Silva continua.

“Esta greve não tem só a ver com o nosso emprego. Tem a ver com o próprio Sistema Nacional de Saúde (SNS). Sim as taxas moderadoras estão mais elevadas, mas é melhor do que privatizar”.

A poucos metros de distância da médica que veio do Porto, um outro especialista segura uma bandeira improvisada e escrita à mão “Não ao medo”. Perto dele o médico neurologista, João Proença, distribui autocolantes com reivindicações. “Aos 61 anos, diz que ganha “1500 euros limpos por mês”, porque os serviços de urgência “são assegurados por médicos contratados a empresas”. “Com a minha idade, os médicos preferem parar e ir trabalhar no privado. Vão haver cada vez menos profissionais qualificados”, diz o especialista ao serviço do hospital Garcia de Orta, em Almada.

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João Proença é especialista em Neurologia no Hospital Garcia de Orta, em Almada

Ana Moreira, 27 anos, e Edgar Moreira, 25, vieram juntos de casa, em Lisboa, para se manifestarem à porta do Ministério da Saúde. O casal partilha diariamente as dificuldades que sente no trabalho. Ela, pedopsiquiatra no Hospital Dona Estefânia, ele pediatra no Santa Maria. “Estamos aqui pela defesa das condições de trabalho. Não se admite termos crianças que já passaram por quatro sítios antes de chegar ao pé de nós”, critica.

“Os hospitais fecharam portas a quem não tem residência na área. Por exemplo, se partir um braço em Castelo Branco e viver em Lisboa, e o caso não for considerado grave, é transferido para Lisboa com o braço partido. Para não haver problemas de imputação de custos”, diz o pediatra Edgar Moreira.

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O casal de médicos: Edgar Moreira é pediatra no Santa Maria e Ana Moreira é pedopsiquiatra no Hospital Dona Estefania

Por outro lado, no Hospital Dona Estefania, Ana Moreira tem sentido as dificuldades diariamente. “Somos o único serviço de urgência pediátrica à noite entre o Algarve e Abrantes”. E questiona. “Imagine uma criança que tem que vir do Algarve e que já passou por outras unidades de saúde antes de chegar ali. E depois nem temos uma sala onde a possamos atender isoladamente”, critica.

 90% de adesão

A Federação Nacional dos Médicos (FNAM) estima que a adesão ao primeiro dia de greve greve dos médicos ronde os 90 por cento a nível médio nacional. Mário Jorge Neves, dirigente da FNAM, disse hoje aos jornalistas que há serviços e unidades de saúde nos quais os valores de adesão à greve estão a ser superiores aos da paralisação de há dois anos.

Apesar do Sindicato Independente dos Médicos (SIM) não ter aderido a este protesto, Mário Jorge Neves disse que houve elementos daquela estrutura sindical que estão presentes na concentração junto ao Ministério da Saúde.

O protesto contou com a presenção do secretário-geral da CGTP, Arménio Carlos, com várias movimentos associativos que representam utentes, reformados e pensionistas. O deputado João Semedo, do Bloco de Esquerda, também esteve na manifestação.