Já é possível tomar medicação que previne a infeção com VIH. A terapia não está generalizada, mas existe, e começa a ser recomendada a grupos de risco como forma de reduzir a exposição a um vírus mortal. A sua eficácia está demonstrada cientificamente e, embora não possa ser usado de forma ampla devido aos riscos de toxicidade e de resistência do vírus, pode ser útil em determinadas situações.
Os mesmos medicamentos que são regularmente usados no tratamento das infeções do VIH (vírus da imunodeficiência humana) podem ser usados na prevenção dessa infeção. Atualmente a medicação é recomendada a pessoas que sejam involuntariamente expostas ao vírus, como um médico que se pica numa agulha de um doente seropositivo. Mas já há recomendações para que sejam administradas em grupos de risco como forma de prevenção antes da exposição à infeção.
No próximo domingo, na abertura da Conferência Internacional sobre SIDA em Melbourne, Austrália, que irá durar uma semana, este tema estará no centro de todas as discussões. Um tratamento preventivo com eficácia na prevenção de infeções pode mudar os comportamentos de risco no mundo — ou pelo menos no primeiro mundo, onde será possível pagar pelo medicamento e tomá-lo de forma a compensar a exposição planeada a comportamentos de risco.
Esta discussão, neste momento, vem reenquadrar a abordagem ao HIV enquanto problema de saúde pública. Ao mesmo tempo que se continua a aprofundar a investigação para descobrir uma cura, muda-se o paradigma de como lidar com o HIV. Nos últimos dez anos, o HIV passou a ser visto como uma doença crónica com a qual se vive de forma mais ou menos estável desde que se tome a medicação de forma controlada.
Destruir o vírus antes da infeção
Ao mesmo tempo, nos últimos anos, utilizou-se uma terapia controlada de 28 dias a que se sujeitava qualquer pessoa que tenha sido involuntariamente exposta ao vírus — por questões clínicas ou por possível contacto sexual direto (como por exemplo vítimas de violação). Agora, o que está em causa é um comprimido que se toma antes de uma pessoa se expor a um risco, de modo a prevenir a possível infeção que pode advir do contacto com o vírus.
Apesar de as formas de transmissão do VIH e prevenção da infeção serem bem conhecidas pela população em geral, muitas pessoas continuam a manifestar sistematicamente comportamentos de risco, admite ao Observador Luis Mendão, presidente do Grupo Português de Ativistas sobre Tratamentos de VIH/Sida (GAT). Por isso defende o uso desta medicação em trabalhadores do sexo e pessoas cujas “intervenções motivacionais para o uso de preservativos falharam”.
O presidente do GAT não generaliza: “Nem todas as pessoas dos grupos de risco precisam, porque utilizam regularmente outros meios de prevenção [como o preservativo].” Mas é essencial para as pessoas que não conseguem ou não podem usar preservativos, como as mulheres que têm “dificuldade em negociar sexo seguro com os parceiros ou clientes”. Para estes casos refere ainda que estão em ensaios clínicos anéis vaginais antirretrovirais que libertam o medicamento gradualmente durante 1 a 3 meses.
A profilaxia pré-exposição — medicação para prevenção da infeção — é aceite por Jaime Nina, clínico no Hospital Egas Moniz, nos casos já referidos de dificuldade no uso de preservativo, mas defende que não se deve abusar dos medicamentos antirretrovirais — usados tanto no tratamento da infeção pelo VIH como na prevenção. “É um terapia incómoda, porque tem de ser feita todos os dias e obriga a uma disciplina muito grande por parte do doente. E tem uma toxicidade significativa”, justifica ao Observador.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) divulgou na passada semana uma série de recomendações para prevenção e tratamento da infeção por VIH, reforçando a importância da profilaxia entre homens que têm relações sexuais com outros homens e trangéneros, porque o risco de contágio é ainda maior do que entre prostitutas. A OMS defende o uso simultâneo de preservativo.
Vender ou não os medicamentos de prevenção?
Por enquanto os medicamentos antirretrovirais são distribuídos gratuitamente nas farmácias dos hospitais a seropositivos (pessoas infetadas com o VIH) e a quem esteja a realizar uma profilaxia pós-exposição — para impedir que a infeção se desenvolva. Os custos para o Sistema Nacional de Saúde são muito elevados – 300 mil euros gastos ao longo da vida por cada infeção, diz Luis Mendão. O que torna inviável, tanto para o Estado como para o doente, a distribuição em larga escala destes comprimidos para prevenção da infeção, pelo menos enquanto não forem comercializados medicamentos mais baratos.
Mantendo sempre presente a necessidade de receita e a avaliação regular pelos médicos, o presidente do GAT não exclui a hipótese de que estes medicamentos sejam comercializados nas farmácias. Já Jaime Nina considera que o assunto tem de ser muito bem estudado para que não haja riscos para a saúde pública. O médico especialista em doenças infecciosas dá o exemplo dos medicamentos contra a tuberculose ou lepra que não estão à venda para “preservar a eficácia” pela garantia da toma correta, acautelando também o risco de desenvolver resistência ou de uma toxicidade inesperada.
O risco de aumentar a promiscuidade ou de ser utilizado indiscriminadamente em vez do preservativo tem sido discutido nos Estados Unidos, onde estes temas são politizados e polarizados. Jaime Nina desvaloriza esta questão, referindo com mais destaque o aparecimento de estirpes de vírus que se tornem resistentes à medicação. Luis Mendão também considera que esta medicação não substitui outras formas de prevenção, como o uso correto de preservativo masculino e feminino e o reforço com gel lubrificante – porque aumenta a segurança do preservativo. Comparando a profilaxia pós-exposição com o exemplo da pílula do dia seguinte, diz também não acreditar que a sua disponibilização em farmácias origine uma procura indiscriminada.
Truvada, nome comercial do produto dos laboratórios Gilead, é um dos medicamentos mais usados atualmente. Conjuga duas moléculas das mais de 20 existentes para o tratamento da infeção do VIH. Jaime Nina explica que o sucesso da utilização desta combinação é que o vírus não consegue tornar-se resistente às duas moléculas em simultâneo. Mesmo quando se torna resistente a uma delas torna-se mais sensível à outra. Em Portugal é sempre administrado em conjunto com uma terceira molécula, para garantir os resultados.