No sopé de uma colina, tal como Lisboa, o bairro de pescadores em Lamno, localidade a cerca de 200 quilómetros de Banda Aceh, na ilha da Samatra, onde residia a maioria da comunidade dos portugueses de Aceh, tem apenas vestígios de uma ponte e de uma habitação.

O antigo mercado do peixe onde as centenas de pessoas do bairro português se abasteciam é hoje uma mistura de areia e de excrementos de búfalo em frente ao mar.

Jamaluddin, que se apresenta só com um nome, faz parte de um grupo de cerca de quatro pessoas que ainda são conhecidos em Lamno como os portugueses de Aceh ou como os “mata biru” (olhos azuis, em indonésio).

Jamaluddin tem 45 anos e o tsunami roubou-lhe uma filha e a esposa, também ela da comunidade de descendentes portugueses, cujos elementos costumavam casar entre si.

O indonésio, que trabalha na plantação de pimenta e tem gado a seu cargo, voltou a casar, desta feita com uma pessoa fora da comunidade de descendentes portugueses, e vive num bairro construído pela Arábia Saudita, numa região cujo património é hoje multicultural devido aos vários países que participaram na reconstrução de Aceh.

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“Os meus filhos têm a pele muito branca, cabelo castanho e as pessoas chamam-lhes “bule”, disse Jamaluddin, referindo-se a um termo local que significa “pessoa branca” e que é comummente usado, sem qualquer conotação depreciativa, pelos indonésios quando estão na presença de um caucasiano.

A comunidade tem a histórica reputação de discrição e timidez e Jamaluddin e um dos seus filhos, Rahmat Syah Putra, que falou com a Lusa, não são exceções.

Porém, tal como no período antes do tsunami, em que as pessoas com olhos azuis, cabelo louro e nariz pontiagudo eram o centro das atenções, também Jamaluddin tem características que o distinguem dos demais homens de Aceh que vão para além da cor da pele, tais como braços peludos e cabelo e olhos castanhos.

Rahmat Syah Putra, de 20 anos, não usa o cabelo tão comprido como o do pai, mas segue-lhe o gosto pelas camisolas sem mangas, algo pouco habitual na Indonésia.

Pai e filho sabem apenas que têm descendência portuguesa – embora frisem que se sentem iguais aos outros habitantes de Aceh – e não seguem qualquer tradição particular, dado que a comunidade dos “mata biru” integrou-se totalmente na região, falando sobretudo o dialeto da província e professando a religião muçulmana.

“O tsunami mudou muito a minha personalidade, o meu comportamento, o meu caráter e muitas outras coisas”, frisou o jovem, acrescentando que agora está “mais próximo de Deus” e que o seu sonho é tornar-se num líder religioso.

Rahmat Syah Putra, que encarou o tsunami não como um castigo, mas como um “teste”, confessou que antes do desastre nem sempre rezava cinco vezes ao dia, como é prática na religião muçulmana.

Os portugueses foram os primeiros europeus a chegar à Indonésia, no início do século XVI e, apesar de terem-se estabelecido sobretudo na região oriental do país, alimentaram o sonho de controlar o comércio da pimenta desde a zona estratégica do Norte da Samatra até ao mercado chinês.

Contudo, o período ficou marcado por animosidades políticas e militares intercaladas com relações amistosas com os sultões de Aceh antes da colonização holandesa, e os portugueses até ergueram uma igreja numa região que é conhecida como a Meca do país com mais muçulmanos no mundo.

Nurdir Ar, antigo diretor do Museu de Aceh, explicou à Lusa que, de acordo com o “costume e a lei local” na altura, “um barco naufragado e os seus passageiros passavam a pertencer ao sultão e, finalmente, tornavam-se achéns”.

Questionado sobre o porquê da designação de “olhos azuis” associada aos portugueses, o também professor de filologia na Universidade Islam Negeri, de Banda Aceh, respondeu que “talvez houvesse um português ou outra pessoa a viajar no navio português”.

“Eu especulo que dentro dos barcos eram todos homens e os homens portugueses casaram com mulheres locais. Com o passar do tempo, estes portugueses converteram-se ao Islão”, acrescentou.

Antes do tsunami, a comunidade teria talvez cerca de 500 pessoas, referiu, advertindo, contudo, que é difícil apontar um número, porque a região conta com descendentes de outros europeus e árabes.

Apesar dos elementos desta pequeno grupo de “mata biru” ainda podem dar-lhe continuidade, até porque há casos em que “a mãe é muito escura, mas o filho é muito branco”, Nurdir Ar prevê que no futuro as pessoas esqueçam a ideia dos portugueses de Aceh ou “mata biru”.