Não deixa de ser irónico que um documentário sobre vigilância global se passe praticamente todo em espaços fechados: quartos de hotel, casas particulares, redacções de jornais, salas de audiências públicas, etc. No entanto, “Citizenfour”, de Laura Poitras (estreia-se hoje), que se centra na figura de Edward Snowden, o mais célebre delator da história dos serviços de espionagem, consegue ter tanto ou mais suspense como o mais atarefado “thriller” ficcional.
Analista contratado para trabalhar para a National Security Agency (NSA), Snowden descobriu que, na sequência dos ataques do 11 de Setembro, o governo dos EUA pôs de pé, com a plena colaboração dos seus aliados e invocando a “ameaça terrorista”, um colossal sistema de intercepção e devassa de telecomunicações e do ciberespaço à escala planetária, que recolhe ilegalmente dados de milhões de cidadãos e de entidades, ao invés de seleccionar apenas as comunicações de terroristas identificados, suspeitos de terrorismo ou potenciais terroristas e seus contactos e circunstantes.
Percebendo que, cada vez mais, no mundo electronicamente ligado em que vivemos, a liberdade dos cidadãos está intrinsecamente ligada à sua privacidade, Snowden decidiu denunciar esta situação, contactando Poitras, autora de dois importantes documentários sob os EUA pós 9/11 e as consequências da “guerra ao terror” (“My Country, My Country”, e “The Oath”, com “Citizenfour” a completar a trilogia) e ela mesmo já sob vigilância das autoridades americanas.
“Trailer” de “Citizenfour”
Foi sob o olhar paciente e atento da câmara da realizadora que decorreu todo o processo de revelação ao público, no qual participou também o jornalista Glenn Greenwald, do The Guardian, desde a primeira mensagem codificada que Snowden enviou à realizadora para se dar a conhecer, em Janeiro de 2013, até à publicação do material que ele cedeu em vários jornais e revistas de referência de todo o mundo, com as consequentes repercussões (“Citizenfour”, que tira o seu título de um pseudónimo que o denunciante usou para comunicar com a realizadora, é também uma chamada de atenção para a o papel e a importância fundamentais do jornalismo de investigação).
Edward Snowden surge como o oposto de Julian Assange, que passa brevemente pelo documentário. Onde o homem da Wikileaks passa uma imagem movediça, complexa, pouco fiável e, sob uma capa de independência e abnegação, poderá mesmo ser um agente de interesses escondidos na sombra, Snowden é perfeitamente articulado, parece não ter cordelinhos que o movimentam nos bastidores e ser um tipo sinceramente chocado e preocupado com a escala e o poder não-supervisionado da “força informática do mal” de que era uma das engrenagens. E que denunciou desprendida e corajosamente, sabendo que a sua vida iria mudar dramaticamente para sempre e teria que deixar pátria, família, amigos e quotidiano confortável para trás quando revelasse a sua identidade. O analista frisa ao longo de todo o processo que o tratamento e a selecção da massa de informação por ele cedida é tarefa que não lhe cabe, mas sim aos jornalistas escolhidos para a receber e divulgar. “A história não é sobre mim”, diz ele a Poitras (mas claro que também é, e como).
Laura Poitras fala sobre o documentário
Longe do traidor que nele vê a Casa Branca do sonso e hipócrita Barack Obama, Edward Snowden revela-se um patriota mais verdadeiro e corajoso, e um mais genuíno e desinteressado defensor das liberdades civis, do que muitos dos que mastigam patriotismo e liberdade, na sua denúncia dos abusos escancarados do Estado em nome da defesa da integridade e dos direitos fundamentais daqueles que nele confiam para a sua protecção. Até onde devemos permitir que vão os poderes que elegemos, em nome da prevenção e neutralização das ameaças que pairam sobre nós, os nossos valores e o nosso modo de vida? Como compaginar a necessidade dos serviços secretos fazerem o seu trabalho de recolha de dados e informações, com a protecção das nossas liberdades? Quem e como vigia e supervisiona os vigilantes, e detecta e trava os abusos securitários? São apenas três das importantíssimas perguntas que “Citizenfour” deixa para discussão.
Entrevista com Edward Snowden
Directo, tenso mas controlado, poderosamente documental no seu olhar límpido e descritivo, “Citizenfour” não traz mochila “militante” às costas nem palha de jargão técnico a atrapalhar, e está limpo de efeitismos que se intrometeriam na nossa percepção dos acontecimentos, recorrendo apenas a uma banda sonora digital pulsante e levemente ominosa. A acção ciranda de quarto de hotel para redacção de jornal para sala de parlamento, entre Washington, Berlim, o Rio de Janeiro e Hong Kong, até se deter enfim em Moscovo, onde Snowden – outra ironia – encontrou asilo com a namorada, e usando pontuação regular de ecrãs de televisão a anunciar exclusivos e “ultimas” horas relacionadas com o caso, a realizadora empolga-nos e arrebata-nos até nos deixar à beirinha do assento.
O filme tem também os seus momentos de distensão e descontracção, como aquele em que Laura Poitras filma Edward Snowden na casa de banho do quarto do hotel, indeciso sobre o tamanho da sua barba de alguns dias. O que fazer, cortá-la ou apenas apará-la? Um momento banal que faz sorrir, que o humaniza ainda mais aos nossos olhos e aumenta a nossa empatia com ele.
Contando com o braço documental da estação HBO entre os produtores, e ajoujado de prémios, entre os quais o Óscar e o BAFTA de Melhor Documentário de Longa-Metragem “Citizenfour” é, em simultâneo, um “thriller” de espionagem real sobre a mesma matéria dos de ficção (verdade e mentira, conspiração e ocultação, perigo, risco e revelação) e cinema de rigoroso serviço público.