O terceiro período escolar arrancou esta terça-feira e daqui a um mês e meio os alunos do 4.º e do 6.º ano vão ser postos à prova. Pela primeira vez, os exames nacionais do final do primeiro e do segundo ciclo vão avaliar as novas metas curriculares de português e matemática. Os professores estão preocupados e dizem que é “impossível” lecionar toda a matéria estabelecida para cada ano. Os alunos sentem mais dificuldades e acusam ansiedade. Já o Ministério da Educação fala em programas “mais rigorosos e exigentes” e diz que é tudo uma questão de “adaptação”.
“Se os alunos estão preparados para os exames que aí vêm? Trabalhámos afincadamente, não perdemos tempo e demos a matéria toda. Mas dar a matéria toda não significa que os alunos tenham aprendido tudo. Por isso a resposta vai estar muito condicionada pelo tipo de provas que for apresentado”, adiantou ao Observador Anabela Grácio, diretora do Agrupamento de Escolas de Constância, no distrito de Santarém, que não é a única a manifestar algum receio em relação aos exames. Subindo ou descendo no mapa, foram reportadas as mesmas dificuldades.
“A situação está extremamente complicada. Está de tal maneira exigente que os alunos não têm tempo para consolidar a matéria e o grande receio é que com os exames à porta a desgraça seja muito grande”, retratou Carlos Dias, coordenador do primeiro ciclo no Agrupamento de Escolas General Serpa Pinto, em Cinfães.
As novas metas de matemática entraram em vigor no 1.º e 3.º ano em 2013/2014, tendo-se estendido ao 2.º e 4.º ano no presente ano letivo. No caso do português as novas metas entraram em vigor no 1.º, 3.º e 4.º ano em 2013/2014 e este ano letivo alargaram-se ao 2.º ano de escolaridade. No que toca ao segundo e terceiro ciclo, as novas metas a português e matemática foram introduzidas no 5.º e no 7.º ano em 2013/2014 e agora estenderam-se ao 6.º e 8.º.
Só este ano os exames nacionais de 4.º e 6.º ano – que contam 30% para a nota dos alunos – vão incorporar as novas metas, mas, segundo Clementina Timóteo, vogal da Sociedade Portuguesa de Matemática (SPM), “quem constrói as provas tem perfeita noção que estamos numa fase de transição e portanto os exames não podem ser fraturantes”.
Todos os anos a ansiedade cresce em véspera de exames, mas este ano está pior pois os professores estão a ter noção de que não vão conseguir cumprir com o programa devido à “extensão” do mesmo e às “metas demasiado exigentes e em alguns casos desadequadas”, explicou Anabela Grácio.
Com metas “impossíveis” de atingir, há escolas que já admitem adiar conteúdos
Mas a verdade é que a preocupação dos professores vai muito para lá desta avaliação externa, que vai decorrer entre os dias 18 e 21 de maio. Os professores e diretores de escola queixam-se das mudanças efetuadas, dizem que não têm tempo para trabalhar as matérias com os alunos e que estão cada vez mais agarrados aos manuais escolares.
“Muitos conteúdos foram antecipados em dois anos” o que resultou, em alguns casos, “na introdução de conteúdos para os quais os alunos não têm capacidade de abstração suficiente”, começou por dizer Anabela Grácio, dando como exemplo a introdução do conceito de fração no segundo ano de escolaridade. “Isto impede a necessária consolidação das aprendizagens, com implicações negativas nos resultados das aprendizagens e na assunção da ‘incapacidade de aprender’ por parte dos alunos e das famílias”, acrescentou.
Mas os exemplos de conteúdos “desajustados” – sobretudo a matemática – no primeiro ciclo de ensino multiplicam-se, bem como os exemplos de conteúdos antecipados nos ciclos seguintes, segundo os professores contactados pelo Observador:
- Noção de reta e semirreta, semirretas opostas, reta suporte de uma semirreta e segmento de reta no segundo ano de escolaridade. “Com sete anos os alunos não têm noção de infinito”, frisou Anabela Grácio
- Classificação de triângulos quanto aos lados logo no segundo ano. Antes era lecionado no segundo ciclo
- Efetuar conversões de medidas de tempo expressas em horas, minutos e segundos, logo no terceiro ano
- Multiplicar e dividir números racionais não negativos, no quarto ano
- Conversão de medidas de amplitude de ângulos e adição e subtração de medidas de amplitude de ângulos, que antes eram lecionados no sétimo ano
- Introdução no 7.º e 8.º ano da unidade “operar com raízes quadradas e raízes cúbicas”, anteriormente lecionada no 9.º ano
Também para Lurdes Figueiral, presidente da Associação de Professores de Matemática, “é impossível cumprir as metas”.
“Esta abordagem de matemática é uma abordagem dos anos 50, impossível para a escola democrática, para a escola de todos. Mesmo para os bons alunos será sempre um mau serviço pois vão ser levados a interiorizar coisas sem compreender, a aceitar dogmaticamente as coisas sem questionar”, defendeu Lurdes Figueiral.
O psicólogo Tiago Almeida, professor na Escola Superior de Educação de Lisboa, confirmou que “algumas das exigências que são feitas atualmente, como a das frações no segundo ano, exigem por parte das crianças um conjunto de recursos cognitivos que muitas vezes ainda não estão totalmente maturados”. “Aquilo que atualmente é exigido tem um nível de complexidade muito superior àquilo que a maioria das crianças consegue aprender”, rematou o psicólogo.
E perante este cenário – da impossibilidade de cumprimento das metas estabelecidas – Anabela Grácio já tomou uma decisão: “a partir do próximo ano letivo vamos assumir o princípio do ensinar para promover aprendizagens”. “Podemos dizer que cumprimos as metas, mas não para todos”, clarificou a docente.
“Vamos analisar o que é fundamental os miúdos perceberem e quais as margens das metas, o que é que poderá ser dado mais tarde, ou o que é que pode não ser dado se não houver tempo. Há alunos que se dermos tudo o que está previsto não vão aprender nenhum conteúdo das metas porque vão desistir da matemática”, revelou a diretora do Agrupamento de Escolas de Constância.
Clementina Timóteo é vogal da Sociedade Portuguesa de Matemática (SPM) e esteve envolvida na elaboração das novas metas de matemática. Quando confrontada com uma das principais críticas – a da extensão dos programas – a professora limitou-se a dizer que “os professores ainda não conseguiram arranjar as metodologias mais adequadas e ainda não fizeram as leituras mais amadurecidas de maneira a encontrarem forma de otimizar o tempo”.
Quanto aos alunos estarem a manifestar mais dificuldades, Clementina Timóteo sublinhou ao Observador que “as metas definem tudo e de facto os alunos de topo é que conseguem aprender tudo. Há determinados objetivos que já se sabe que alguns alunos não vão chegar lá. Sempre foi assim, mas antes não havia tanta noção das coisas que os alunos não aprendiam”.
A diferença é que agora com as novas metas, todos os objetivos para cada ano estão claramente definidos e os professores “têm mais noção do que o é que os alunos não conseguiram atingir”. Ao passo que antigamente os conteúdos estavam estabelecidos de forma lata e sem objetivos anuais e os alunos “iam passando sem atingir todos os objetivos”, argumentou.
Sobre os conteúdos estarem desajustados, Clementina garantiu que por exemplo as frações já estavam previstas para o primeiro ciclo no programa anterior (de 2007), e que “estas metas só clarificaram isso e foram um bocadinho mais longe”, adiando o recurso à máquina calculadora. Já as percentagens e as frequências relativas são “uma novidade no 4.º ano de escolaridade, mas em compensação foi retirada a noção de probabilidade que era muito mais abstrata”, afirmou.
Também no segundo ciclo há conteúdos novos, mas “os professores têm de transformar aquilo que ouvem e traduzir para os alunos”. Aliás a vogal da SPM vincou muito a ideia de que cabe aos professores dar a melhor abordagem aos conteúdos.
E embora as novas metas de matemática estejam a dar maior dor de cabeça do que as de português, a verdade é que os alunos também estão a sentir dificuldades na língua materna, segundo diretores e professores ouvidos pelo Observador. Susana Neves, coordenadora da disciplina de português no terceiro ciclo e docente também do ensino secundário no Agrupamento de Escolas de Constância, considera que as metas têm um “problema de base, que é serem anuais, ao invés de serem por ciclo como antes”. A juntar a isso “a matéria é muita e as metas são muito ambiciosas, feitas para alunos de topo”. Houve, por exemplo, alterações ao nível dos conceitos e das terminologias e “como os alunos do 7.º ano não tinham aprendido os conteúdos com aqueles nomes, gera confusões”. Por exemplo, no domínio da sintaxe, os complementos circunstanciais passaram a ser complementos oblíquos ou modificadores.
Helena Buescu, coordenadora da equipa das Metas Curriculares de Português, desmente que tenham sido as novas metas a trazer novos conceitos: “a transformação dos complementos circunstanciais em complementos oblíquos não foi por nós decidida. Ela foi imposta pelo Dicionário Terminológico e surgiu no Programa de 2009”.
Já a “lecionação por anos e não por ciclos é a única organização que permite claramente estabelecer a progressão de ano para ano”, explicou Helena Buescu, acrescentando que “a dispersão de objetivos por diferentes anos”, como aconteceu apenas no Programa de 2009, impedia “a existência de uma maior homogeneidade em todas as escolas do País”.
Além disso, houve um aumento do número de obras, o que deixa menos tempo para cada uma delas, acrescentou Manuel Grilo, professor da Escola Básica Professor José Salvado Sampaio, em Benfica, e “temos indicação concreta das obras a dar”, somou Susana Neves. “Nós dar a matéria damos, mas não há tempo para consolidar”, rematou.
Mais uma vez a coordenadora da equipa das Metas Curriculares de Português vem dizer que não é verdade. “A equipa das metas seguiu rigorosamente as indicações de número e género de obras e textos indicados no Programa”.
Então o que mudou? “Anualização e consequente progressão e as indicações precisas de como se deve aprender a ler e a escrever, sobretudo nos dois primeiros anos [de escolaridade]”, avançou Helena Buescu, acrescentando que “esta última questão ficou a cargo do maior especialista europeu no ensino da leitura e da escrita”. E quem critica a velocidade de leitura “desconhece este facto demonstrado em todos os estudos: é a velocidade de leitura que determina a compreensão, não o inverso”, afirmou.
“Quem continua, no 5.º ano, a soletrar ou a silabar na leitura, está tão concentrado na decifração de um código, que já devia nessa altura ter interiorizado, que a sua mente não fica liberta para a realização de outra tarefa: compreender o que está a ler”, defendeu Helena Buescu, coordenadora da equipa das Metas Curriculares de Português.
Resultados dos alunos estão a piorar
Com conteúdos mais exigentes, na opinião do ministro da Educação, ou mais desajustados, na versão de professores e diretores de escolas, os alunos têm manifestado maiores dificuldades em apreender a matéria e os resultados estão a mostrar isso.
“Os alunos desmotivam com tanta matéria. É todos os dias matéria nova”, afirmou Domitília Mendes, professora de matemática do terceiro ciclo, do Agrupamento de Escolas de Constância. “O objetivo [destas metas] era que os alunos chegassem com menos dificuldades à faculdade. Agora o problema é que vão lá chegar muito poucos”, completou.
Também Manuel Pereira, presidente da Associação Nacional de Dirigentes Escolares (ANDE), não hesitou em dizer que os resultados “são maus”. “Os resultados até vinham melhorando e agora pioraram. Os alunos estão a andar para trás outra vez”, atestou.
Outro dos problemas é que mesmo que os alunos precisem de ajuda em casa, “muitos pais nem conseguem ajudar” e isso tem feito com que haja “mais a alunos a chegar à escola sem trabalhos feitos”, denunciou Carlos Dias, coordenador do 1.º ciclo num centro escolar de Cinfães.
A português, embora o problema seja “menor”, as dificuldades também têm surgido e como “os professores não têm tempo para acompanhar os alunos, eles estão a piorar os resultados”, garantiu Susana Neves, coordenadora da disciplina de português no terceiro ciclo e professora do ensino secundário no Agrupamento de Escolas de Constância.
Este agrupamento facultou ao Observador a evolução do sucesso obtido no primeiro período em cada ano escolar do segundo e terceiro ciclo, nos últimos anos letivos, e o que se verifica é “um decréscimo nos resultados dos alunos desde a introdução das metas, podendo ser este um dos fatores que influencia a descida“, sublinhou a diretora do agrupamento. Por exemplo, a taxa de sucesso no 5.º ano, que desde 2010/2011 era superior a 90%, em 2013/2014 baixou para 75,4%. Também no 7.º ano os valores mínimos obtidos até à alteração das metas tinham rondado os 73% e em 2013/2014 a percentagem de sucesso passou para os 58,8%.
Além da extensão do programa, a diretora Anabela Grácio apontou ainda a “maior exigência de um trabalho autónomo por parte dos alunos fora da sala de aula, o que leva a que muitos alunos não consigam acompanhar”.
Ministério fala em mais rigor e exigência
Confrontado com as críticas, o Ministério da Educação lembrou ao Observador que os programas, bem como as metas, estiveram em consulta pública e que integraram vários contributos de professores, associações, sociedades científicas, diretores de escolas e outros especialistas em educação. E na opinião da tutela, “os novos programas são mais rigorosos e exigentes”.
“De facto, os programas que se encontravam em vigor eram demasiado vagos, com vários conteúdos mal articulados entre si de um ponto de vista científico e com uma extensa lista de indicações metodológicas desatualizadas e de eficácia desacreditada”, acrescentou fonte oficial do Ministério da Educação e Ciência.
E por isso mesmo, admitiu fonte oficial, “é perfeitamente natural que os professores necessitem de uma fase de adaptação a estes novos currículos”, sendo que, segundo o Ministério “neste segundo ano de aplicação a evolução é extremamente positiva”.
Uma visão que não foi contudo partilhada pelos professores e diretores de escola com quem o Observador falou. “A situação ao fim do segundo ano de novas metas não é simpática. As escolas estão com dificuldades. Todos se queixam”, garantiu Manuel Pereira. A tese de maior rigor e exigência também não mereceu concordância dos docentes.
“Esta capa da exigência é absolutamente falsa. Uma coisa que não é adaptada à faixa etária não é exigente, é má”, criticou Lurdes Figueiral, da Associação de Professores de Matemática.
“Exigente era o programa que estava em vigor porque apelava a capacidades cognitivas muito mais importantes. Este programa limita-se à memorização e treino de rotinas e é um acumular de conhecimentos – que nem são bem saberes – rapidamente esquecidos”, acrescentou Lurdes Figueiral.
PS diz que “todos estes assuntos” estão a ser discutidos na elaboração do programa eleitoral
Questionada sobre se estaria nos planos deste governo rever novamente as metas, fonte oficial do Ministério da Educação não respondeu. Mas essa hipótese pode não estar completamente afastada, caso o Partido Socialista assuma o leme do País. O deputado socialista Acácio Pinto não se quis antecipar, explicando que o programa eleitoral “está em elaboração” pelo que não faz sentido “se comprometer agora com uma alteração às metas”, mas admitiu que “todos estes assuntos estão em cima da mesa”.
“O que lhe digo é que a posição do PS relativamente a alguns aspetos das metas curriculares tem sido muito, muito crítica. No caso da matemática inclusivamente acompanhamos a posição que tem sido defendida pela Associação de Professores de Matemática. Na questão do português também tem havido muitas críticas. Esta é a forma como não se podem fazer as coisas”, rematou o deputado socialista.