Entra em palco a cantar ópera, envolvida em tecido esvoaçante. A silhueta revelada a cada passo entre nuvens de vapor. Move-se como uma gata, o corpo enrolado a moldar os movimentos. Assanhada dirige-se ao público e puxa o cabelo a alguém na primeira fila. Transformou-se na amante zangada, cansada de ser alternativa. Tudo feito com uma graça sinistra mas atraente. Esta podia ser uma descrição do que acontece num espetáculo de FKA twigs.

É uma espécie de R&B com eletrónica à mistura. Soa a dubstep. Mas também parece trip-hop. Ou então não é nada disso. É simplesmente FKA twigs. Uma artista à procura da simplicidade no caos. Como prova a escolha de títulos para os discos que já gravou: EP1, EP2 e o mais recente longa-duração, em Agosto de 2014, LP1. Nada mais simples.

O álbum é fruto da atitude criativa e da filosofia artística da autora que coloca os sentidos ao serviço da engenharia sonora, assumindo o controlo total do processo criativo. A criação espontânea e surreal é feita com a mínima intervenção da consciência. E ela diz nas entrevistas que as ideias para os vídeos chegam no mesmo instante em que está a sonhar com a música. O single de apresentação é o tema “Two Weeks” cujo vídeo leva a atmosfera onírica ainda mais longe, retratando a cantora como uma deusa de inspiração egípcia vinda do futuro.

LP1 é sobretudo uma declaração artística, consumada nos alicerces dos dois EP’s anteriores e dos vídeos que captaram a retina de críticos e especialistas. “Water Me” incluído no EP2 lançado em 2013 já acumulou mais de oito milhões de visualizações no YouTube. A sonoridade invulgar valeu-lhe de imediato comparações com Prince, Kate Bush e Tricky. Recebeu uma nomeação para o Mercury Prize na categoria de Melhor Álbum Inglês 2014. Seguiram-se mais nomeações para prémios da BBC, New Musical Express, Brit e Grammy mas só este ano ganhou a primeira distinção internacional nos YouTube Music Awards com o vídeo de “Glass & Patron”, produzido e realizado pela artista. Veja porquê:

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Divulgado a 23 de março, o tema foi escrito e produzido em parceria com Jordan Asher (também conhecido por Boots) para o anúncio “Google Glass” e funciona como primeiro avanço do próximo EP3, a editar ainda este ano. Quinze dias antes, a 9 de março, passaram 18 anos desde a morte de Christopher Wallace, melhor conhecido como The Notorious B.I.G., assassinado em 1997. Para celebrar a obra do rapper, o DJ Terry Urban gravou e publicou um álbum de misturas onde a voz de Biggie se encontra com a de FKA twigs.

É só mais um exemplo da atenção que a comunidade artística, da música ao design passando pela moda, está a dar ao fenómeno. Diz-se que ela está a redesenhar o som da música contemporânea. Atua este sábado, dia 11, no festival Coachella com transmissão em direto no YouTube. Para além da agenda cheia de espetáculos, da Islândia ao Japão, ela está virtualmente a aparecer em toda a parte com um efeito contagiante. Vem na edição de abril da Vogue norte-americana e é presença habitual na GQ e na Vanity Fair. Ocupa a segunda posição na “Cool List 2015” da edição de março da FHM britânica. E até a encontramos em alta definição em algumas fachadas de Nova Iorque como esta, em Manhattan.

Afirmou-se como bailarina de suporte em espetáculos e vídeos de Jessie J, Kylie Minogue, Ed Sheeran, Taio Cruz e Plan B. Em 2011 entrou no vídeo que satiriza uma ida de Beyoncé ao supermercado. Um ano depois estava na capa da revista i-D. Apaixonou-se pela música quando descobriu que a sua paixão pela dança se devia afinal ao prazer de movimentar o corpo ao som de uma melodia.

A baixa estatura e a cara de miúda, decorada por grandes olhos amendoados e uma boca pequena em forma de coração favorecem as comparações com Betty Boop. É conhecida entre amigos e colegas como “twigs” por causa do hábito de estalar as articulações durante o aquecimento para as aulas de dança, produzindo um som idêntico ao de pisar ramos secos na floresta. A palavra pode ser traduzida como galhos, ramos ou rebentos. Teve de acrescentar a sigla FKA (Formerly Known As) que significa “Anteriormente Conhecido Como” quando o duo de gémeas da Califórnia The Twigs reclamou para si o registo do nome. Assumiu desde então o nome artístico FKA twigs como uma marca (sempre com t minúsculo). Em português deve ler-se “éf-kêi-ei tuígs”.

Tahliah Debrett Barnett foi o nome que lhe deram quando nasceu em 1988. A mãe tem ascendência espanhola e o pai, bailarino de jazz, é jamaicano. Só veio a conhecê-lo em adulta. Ela cresceu no meio rural de Gloucestershire, no sudoeste de Inglaterra, com a mãe e o padrasto. Em entrevista à Pitchfork disse uma vez que o pior era “quando o autocarro seguia atrás de um trator agrícola a caminho da escola.” Estudou num colégio privado graças a uma bolsa de estudo. Lembra-se de ser a única mestiça entre brancos. Lidar com a imagem foi desde sempre um desafio e o cabelo foi a primeira singularidade. Para o domar usava óleo de côco e um dia numa aula de história a sua melhor amiga disse que ela tinha o cabelo oleoso. A sensação foi a mesma quando gozaram com o seu “bigode”. Era apenas Tahliah, uma miúda tímida com sotaque campestre.

Começou no ballet e na dança jazz quando tinha oito anos. A mãe era bailarina e professora de dança mas queria evitar o mesmo futuro para a filha. Aos 12 anos adorava dançar em casa ao som de Nina Simone e Billie Holiday. Envolveu-se em desfiles de moda, ateliers criativos e peças de teatro na escola. Estreou-se num espetáculo aos 13 anos e depois continuou a fazer trabalhos, na dança e também como modelo, até aos 16. Nessa altura foi viver para Londres e com 19 partiu para Los Angeles.

Com vinte e poucos anos trabalhou num night club do circuito de cabaré londrino, em Picadilly Circus. A personagem do universo burlesco usava bâton encarnado – a sua cor favorita – um penteado estilo anos 1940 e um vestido sem costas. Admiradora confessa de Josephine Baker, twigs admite que usa um gel e um pente fino para esculpir os elaborados “caracóis-em-S” em torno da face. São uma homenagem à bailarina, também conhecida como “Vénus Negra” e “Black Pearl”, que se tornou uma diva da dança erótica. Considerada a primeira estrela de raça negra, revolucionou Paris nos anos 1920 ao surgir nos palcos praticamente nua. Recebeu mais de mil propostas de casamento.

A semelhança entre percursos separados por quase um século chega a ser intrigante. Baker também teve uma infância problemática. O pai, também músico, abandonou a família logo após o nascimento deixando-a com a mãe. A superação de obstáculos para perseguir o sonho de uma carreira artística. A luta contra o racismo e o apoio à Resistência Francesa na 2ª Guerra Mundial, que se podem refletir no posicionamento ideológico de twigs quando diz que produz música diferente e não se enquadra em nenhum género. Ou quando define a sua geração como a primeira que, desde há décadas, não está obcecada com a indústria do entretenimento.

Agora deixou de ser apenas um segredo partilhado por uma minoria. Está já a caminho de se tornar um fenómeno global. Em novembro passado estreou-se na televisão norte-americana no programa de Jimmy Fallon onde foi apresentado o disco LP1. Veja a interpretação de “Two Weeks” no auditório da NBC.

A viver a fase de descolagem da promissora carreira, aos 27 anos, a artista está noiva do ator Robert Pattinson, numa relação que terá começado em setembro do ano passado. Os tablóides e os paparazzi não tardaram a fixar a imagem da cantora. Uma contradição para quem nunca desejou ser uma estrela pop. Mas está afinal tão perto de o ser.

Metamorfose e experimentalismo são as duas palavras-chave para entrar no misterioso universo da artista. O sussurro sensual alia-se ao movimento gracioso, numa paisagem de contrastes entre o veludo da voz e a violência instrumental. Uma estética surrealista patente nos vídeos que ela própria concebe e dirige, tal como nos espetáculos.

O visual excêntrico e misterioso, a voz e as melodias avant-garde, a encenação cativante e sedutora são já imagens de marca nas aparições da anglo-jamaicana. Como o anel no septo nasal. Ou a roupa custom fit desenhada pela dupla portuguesa Marques/Almeida. O resultado é uma espécie de hipnose induzida eletronicamente. No final ela mostra-se esvaída mas realizada por deixar tudo nos ouvidos de quem assiste ao espetáculo. Reserve o dia 4 de junho para o encontro com a enigmática FKA twigs no Parque da Cidade, no Porto, e deixe-se envolver pelo seu feitiço.

fkatwi.gs / NOS Primavera Sound