Em dez anos de Presidência, nove discursos de abril. Aníbal Cavaco Silva sobe este sábado à mesa da Assembleia da República para fazer a sua última intervenção no 25 de abril. Para trás ficam recados ao Governo e aos partidos, reflexões sobre o país e, sobretudo muitos pedidos de consenso e entendimento.

2014 – Combate à corrupção

“É tempo de abandonarmos a política de vistas curtas, ditada pelo taticismo e pelos interesses de ocasião. Não é por acaso que o espírito de compromisso e de entendimento entre as diferentes forças políticas está na base das regras do sistema democrático consagradas na nossa Constituição”.

“Não se trata de confundir a abertura ao compromisso com uma unanimidade de pontos de vista, nem com uma neutralização da dinâmica de alternância que é própria das democracias. Por isso mesmo, é difícil compreender que numa democracia consolidada agentes políticos responsáveis não consigam alcançar entendimentos sobre questões essenciais para o nosso futuro coletivo”.

“Importa que o combate à corrupção seja assumido como uma prioridade, e que o interesse público seja sempre colocado acima dos interesses privados. No entanto, o combate à corrupção não pode fazer-se através de intervenções populistas, de acusações que desrespeitam princípios fundamentais da nossa ordem jurídica, como a presunção de inocência, o segredo de justiça ou o direito ao bom nome”.

Apelar aos consensos entre os partidos nas várias matérias, independentemente das diferenças de ideologias. Sem “políticas de vistas curtas”, sem “taticismos” e sem políticas guiadas por “interesses de ocasião” foi a mensagem que Cavaco Silva quis transmitir no último discurso do 25 de abril, quando se assinalavam os 40 anos da data.

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Portugal preparava-se para, no mês seguinte, fechar o capítulo do programa de assistência financeira da troika e Cavaco apelava nesta altura para que os desafios do futuro não se esgotassem na “dimensão orçamental”. Mas que também fossem assumidos entendimentos políticos alargados, nomeadamente no que diz respeito à reforma da administração pública. Ao longo do ano, PS e maioria ousaram um acordo na reforma do IRC (ainda com António José Seguro). Sem sucesso, no IRS. A sustentabilidade do sistema de Segurança Social também tem sido um tema quente no capítulo dos entendimentos – em vão.

Em nove anos de discursos, foi neste ano de 2014 que o tema do combate à corrupção mereceu maior destaque na intervenção de Cavaco Silva. O apelo foi claro: assumir esse combate como um combate prioritário e colocá-lo acima dos interesses privados. Sete meses depois, algo inédito acontecia na República portuguesa, um ex-primeiro-ministro era preso preventivamente, por suspeita de crimes de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais.

2013 – Fadiga de austeridade

“Se se persistir numa visão imediatista, se prevalecer uma lógica de crispação política em torno de questões que pouco dizem aos Portugueses, de nada valerá ganhar ou perder eleições, de nada valerá integrar o Governo ou estar na Oposição”.

“É indiscutível que se instalou na sociedade portuguesa uma ‘fadiga de austeridade’, associada à incerteza sobre se os sacrifícios feitos são suficientes e, mais do que isso, se estão a valer a pena”.

“É uma ilusão pensar que as exigências de rigor orçamental irão desaparecer no fim do Programa de Ajustamento, em meados de 2014. Que não haja ilusões. Portugal tem de preparar-se para o final do Programa de Assistência, o que irá ocorrer já no próximo ano. Os nossos agentes políticos, económicos e sociais têm de estar conscientes que deverão atuar num horizonte temporal mais amplo do que aquele que resulta dos calendários eleitorais”.

“Reafirmo a minha profunda convicção de que Portugal não está em condições de juntar uma grave crise política à crise económica e social em que está mergulhado. Regrediríamos para uma situação pior do que aquela em que nos encontramos”.

Dois anos depois do pedido de ajuda externa, é neste ano que ganha forma pela boca de Cavaco Silva o conceito de pós-troika. Pensar o pós-troika muito para lá dos calendários eleitorais foi a mensagem do Presidente da República. Por isso apelou uma vez mais aos tão desejados “consensos” e “entendimentos”, sem “crispação”, que fossem para lá do curto prazo. Pedia, nessa altura, uma visão de médio prazo, que fosse para lá de uma legislatura. No ano seguinte, António Costa desafia Seguro no PS com uma Agenda para a Década, procurando apresentar-se dessa forma como uma “alternativa”.

Com o país a enfrentar sucessivas avaliações da troika, Cavaco faz ele próprio uma avaliação: os portugueses estão cansados da austeridade mas têm revelado um “elevado sentido de responsabilidade”, o desemprego é uma das consequências mais “gravosas” da crise mas, em contrapartida, as contas públicas “estão equilibradas”.

Pelo meio, Cavaco deixa um aviso muito claro aos partidos, especialmente aos dois que compõem o Governo nesta altura (PSD/CDS): Portugal não suportaria uma crise política a par da crise económica e social que já vivia. Mas o Governo não lhe deu ouvidos. Meses depois, no verão, o Governo mergulha naquela que foi a sua maior crise política, com a coligação a ficar por um fio. Vítor Gaspar demite-se das Finanças e Paulo Portas ameaça demitir-se de forma “irrevogável”, mas acaba por ser promovido a vice-primeiro-ministro.

2012 – Credibilidade externa

“Neste dia 25 de abril, a minha intervenção nesta cerimónia tem um objetivo preciso e uma razão prática: exortar os nossos concidadãos a corrigir a falta de informação ou até a desinformação que subsiste no estrangeiro sobre o país que somos. Se o fizermos com sucesso, contribuiremos para melhorar as condições de crescimento da nossa economia e de criação de emprego”.

“Sabe-se, desde há muito, que a imagem de um país é um fator essencial para o seu sucesso. Fornecer um retrato realista e positivo de Portugal é um objetivo nacional”.

“Através de uma perceção externa fidedigna e positiva de Portugal, conseguiremos vender mais bens e serviços produzidos no País e a melhores preços, seremos capazes de atrair mais investimento externo, obter financiamento no exterior a taxas mais favoráveis”.

“Muito se tem dito e escrito no estrangeiro sobre o nosso País que não tem a mínima correspondência com a realidade”.

Credibilidade externa. Foi este o foco do discurso de Cavaco Silva, um ano depois de Portugal ter ficado debaixo do programa de ajuda financeira da troika. Ao longo de toda a execução do programa, de facto, o Governo manteve sempre a preocupação de ser “o bom aluno” da Europa, e a expressão tornou-se popular, usada principalmente pela oposição no seu sentido mais pejorativo.

2011 – Soluções estáveis

“Quando uma democracia se encontra numa encruzilhada, tem de se devolver a palavra ao povo e, depois, respeitar as opções que o povo decidir tomar”.

“Os programas de cada partido têm de ser apresentados ao eleitorado com serenidade. Não podem ser feitas promessas que não poderão ser cumpridas. Vender ilusões ou esconder o inadiável é travar a resolução dos problemas que nos afligem”.

“Dos agentes políticos exige-se que atuem com transparência e com verdade, que esclareçam devidamente os portugueses, sem subterfúgios e crispações artificiais, sem querelas inúteis”.

“As próximas eleições serão um teste decisivo para o regime nascido dos anseios de abril de 1974. Por isso, a próxima campanha eleitoral deve decorrer de uma forma que não inviabilize o diálogo e os compromissos de governabilidade de que Portugal tanto necessita”.

“Todos os partidos devem perceber, de forma muito clara, que, independentemente daquilo que os divide, é imperioso criar espaços de entendimento que assegurem soluções estáveis e credíveis de governo. Perante os desafios que tem à sua frente, o Governo saído das eleições de 5 de Junho deve dispor de apoio maioritário na Assembleia da República”

“É possível vencer se os sacrifícios forem repartidos de uma forma justa”.

Ano de pedido de ajuda externa (tinha sido feito a 6 de abril) e ano de eleições antecipadas. A data do embate entre José Sócrates e Passos Coelho já era conhecida, 5 de junho, faltava pouco mais de um mês. A mensagem de Cavaco Silva neste ano, no discurso do dia da liberdade, foi inteiramente dedicada à urgência de “responsabilidade” que o momento pedia. Eleições eram vistas como “um teste decisivo”.

Em 2011, Cavaco dizia explicitamente que não iria dar posse a um Governo minoritário, depois de dois anos de maioria relativa do PS no Parlamento, e por isso o discurso de antecipação eleitoral foi todo feito nessa base. Que os partidos não entrassem em “querelas inúteis” durante a campanha, para depois não tornarem inviáveis entendimentos de governação futuros. Pedia, ao invés disso, alternativas sérias e credíveis, com propostas sólidas para governar durante um tempo de exceção.

O PSD de Pedro Passos Coelho venceu sem maioria absoluta e formou um governo de coligação com o CDS de Paulo Portas, respondendo dessa forma ao apelo de Cavaco.

2010 – Sensação de injustiça

“A sociedade portuguesa é hoje mais justa do que aquela que existia há 36 anos. No entanto, persistem desigualdades sociais e, sobretudo, situações de pobreza e de exclusão que são indignas da memória dos que fizeram a revolução de abril”.

“A sensação de injustiça é tanto maior quanto, ao lado de situações de privação e de grandes dificuldades, deparamos quase todos os dias com casos de riqueza imerecida que nos chocam”.

“Os portugueses perguntam-se todos os dias: para onde é que estão a conduzir o país? Em nome de quê se fazem todos estes sacrifícios?”.

“É nosso o país. Temos florestas e temos o mar. Temos jovens talentosos que aqui querem viver. Temos cidades e regiões à espera de se afirmarem. É desta matéria-prima que se fazem os sonhos”.

Foi um interregno nos puxões de orelhas político-partidários. No discurso do 25 de abril de 2010, Cavaco Silva debruçou-se mais sobre a “matéria-prima” que Portugal tem e que está à espera de ser aproveitada, elogiou os setores económicos mais bem conseguidos, como as indústrias criativas e o mar, e falou em “esperança”.

Num ano em que o Partido Socialista de José Sócrates governava sem maioria no Parlamento e onde os efeitos da crise internacional, e em especial da zona euro, faziam eco por todo o país, o Presidente da República deixou os recados maiores para os problemas sociais (e não tanto políticos): as desigualdades sociais, a taxa de pobreza e a exclusão social, problemas que não correspondiam certamente ao ideário dos que conquistaram a liberdade em abril.

2009 – Temos difíceis

“Esta sessão solene tem lugar num momento muito particular da vida nacional. Vivemos tempos difíceis, muito difíceis. A palavra «crise», que até há uns meses estava afastada do discurso político, é agora um dado adquirido e assumido”.

“As campanhas devem decorrer com serenidade e elevação e os Portugueses esperam que, num tempo de dificuldades, os agentes políticos saibam dar o exemplo. Que não se perca tempo com questões artificiais, que haja sobriedade nas despesas, que não se gaste o dinheiro dos contribuintes em ações de propaganda demasiado dispendiosas para o momento que atravessamos”.

“Uma campanha em que os adversários políticos se respeitem, sem linguagem excessiva nem crispações, será um contributo para a dignificação da nossa democracia. As forças políticas devem ter presente que sobre elas recai a grande responsabilidade de encontrar soluções de governo, e que essa responsabilidade é particularmente acentuada nos tempos difíceis que o País atravessa”.

“Nas propostas que os diversos partidos irão apresentar ao eleitorado, deve existir realismo e autenticidade. Aquilo que se promete deverá ter em conta a realidade que vivemos no presente e em que iremos viver no futuro”.

Ano de eleições. E de crise económica. Pela primeira vez as palavras “crise” e “tempos muito difíceis” aparecem a marcar o discurso do Presidente da República em dia de celebração da liberdade. À semelhança do discurso de 2011, que também foi ano eleitoral, Cavaco volta a apelar à “elevação” e “seriedade” das campanhas, para não comprometer entendimentos futuros, e apela sobretudo à “responsabilidade” dos agentes políticos nas promessas, assim como à moderação nos gastos.

Recados que parecem não ter surtido muito efeito. Depois de cinco anos de maioria absoluta do PS, o confronto era agora entre Sócrates e Manuela Ferreira Leite. O líder socialista queria a reeleição, mas, com os sinais da crise económica a ficarem cada vez mais evidentes, tinha de apostar em alguns trunfos. Em outubro de 2008, na altura da preparação do Orçamento do Estado para 2009, Sócrates tinha anunciado o aumento dos salários na função pública mais generoso da última década.

Depois das eleições, onde o PS voltou a ganhar mas sem maioria absoluta, no entanto, a bandeira dos “entendimentos” tantas vezes erguida por Cavaco, foi ignorada. Sócrates ainda ensaiou reuniões com os restantes partidos sob o pretexto de negociar uma coligação, mas optou mesmo assim por dar forma a um Governo minoritário.

2008 – O pulsar da sociedade

“Num certo sentido, o 25 de abril continua por realizar. Naquilo que continha em termos de ambição de uma sociedade mais justa, naquilo que exigia de um maior empenhamento cívico dos cidadãos, naquilo que implicava de uma nova atitude da classe política, há ainda um longo caminho a percorrer”.

“Em termos comparativos, além da Hungria e da Eslováquia, Portugal é o país europeu em que os cidadãos dão menos importância à política nas suas vidas. E é esta realidade que aqui trago ao conhecimento dos senhores deputados, na convicção de que os agentes políticos não podem alhear-se do pulsar da sociedade e daquilo que os cidadãos pensam daqueles que os governam”.

“Sou Presidente da República porque não me resignei. Porque quis dar o meu contributo presente para o futuro das gerações que nos seguem. Não me resigno, acima de tudo, porque acredito no meu País e nos seus cidadãos. E, por isso, renovo o apelo de há um ano, dirigido a todos os Portugueses, sobretudo aos mais jovens: não se resignem!”

Nesta altura, as relações entre Cavaco Silva e José Sócrates ainda eram pacíficas – tornaram-se tensas no final do ano quando rebentou o caso das escutas a Belém, e desde aí só tiveram tendência para se agravar -, por isso o discurso de abril voltou a ser mais centrado nas questões da justiça social e na insatisfação dos portugueses com o funcionamento das instituições democráticas. Os recados políticos foram, neste ano, bem menos incisivos.

A preocupação recaiu sobre os jovens e o seu distanciamento face à política e à coisa pública. O apelo foi semelhante ao que já tinha feito em 2007: para os jovens não se resignarem, não se conformarem, e para se envolverem no seu país. Um ano depois, e nos seguintes, Sócrates viria a anunciar algumas medidas em favor dos mais jovens, viradas especificamente para a inserção dos jovens no mercado de trabalho, como o programa Inov Social, de estágios profissionais.

2007 – Apelo ao inconformismo dos jovens

“Interrogo-me, senhores deputados, se não devemos atualizar a evocação do 25 de Abril de 1974, pensando sobretudo naqueles que não sentiram a emoção desse dia. Para os mais jovens, a liberdade tem um significado distinto daquele que possui para muitos dos presentes nesta cerimónia.”

“Estas dúvidas trazem consigo uma outra pergunta: não estarão as cerimónias comemorativas do 25 de Abril a converter-se num ritual que já pouco diz aos nossos concidadãos?”

“Estamos a fazer tudo o que devemos para garantir a sustentabilidade do nosso modelo de Estado social? Como iremos assegurar no futuro a justiça e a equidade entre as gerações? Que ambiente e que recursos naturais vamos deixar aos nossos filhos?”

“Quero, por isso, neste Dia da Liberdade, dirigir-me diretamente às novas gerações e fazer-lhes um apelo, em palavras simples: não se resignem! Neste primeiro ano como Presidente da República, tenho encontrado inúmeros casos de sucesso entre os jovens portugueses.”

“Quero terminar renovando o meu apelo aos jovens portugueses: não se conformem!”

Os jovens, ainda os jovens. Desta vez, Cavaco quis questionar se o país estava a criar as condições certas para os jovens não terem necessidade de emigrar, e as condições certas para garantir a sustentabilidade do Estado social. Temas que viriam depois a ser caros a Passos Coelho, anos mais tarde, nomeadamente quando aconselhou os portugueses a verem na emigração uma oportunidade e quando os números dispararam para valores só equiparáveis aos da década de 60. A sustentabilidade do Estado social continua, ainda hoje, no centro de todos os debates.

Cavaco Silva pediu, nesta altura, aos jovens para que não se resignassem e sugeriu inclusivamente que se repensasse o modelo de comemorações do 25 de Abril, questionando se aquelas comemorações em sessão parlamentar solene não estariam a converter-se num ritual inócuo. O modelo de celebração da data, no entanto, manteve-se sempre igual ao longo dos anos, à exceção de 2011, em que se transferiu a sessão de São Bento para Belém, quebrando ligeiramente a rotina.

2006 – Compromisso para a inclusão social

“Quero referir-me, em particular, ao sonho de justiça social, da construção de uma sociedade mais justa e equilibrada, em que os benefícios do desenvolvimento contemplassem todos”.

“O esforço que o Estado tem vindo a realizar para atenuar os efeitos deste quadro social tem de ser continuado. Não é moralmente legítimo pedir mais sacrifícios a quem viveu uma vida inteira de privação”

“Ficaram muitos dos reformados de ontem confinados às pensões do regime não contributivo que lhes não conseguem assegurar uma existência condigna”.

“Quero propor um compromisso cívico, um compromisso para a inclusão social. Um compromisso que envolva não só as forças políticas, mas que congregue as instituições nacionais, as autarquias, as organizações da sociedade civil, dos sindicatos às associações cívicas e às instituições de solidariedade. Um compromisso em torno de um conjunto de princípios e objetivos que nos orientem na ação coletiva, tendo por alvo os grupos sociais mais vulneráveis”.

Foi o primeiro grande discurso de Cavaco Silva, depois da tomada de posse em janeiro. Escolheu falar do “sonho da justiça social”, em vez de falar do sistema político e do funcionamento dos partidos. A política, pura e dura, e os recados aos governantes, nesta altura ainda ficavam à margem. Centrou-se nas desigualdades sociais, que caracterizou como uma das principais “chagas”, e pediu um “compromisso cívico” alargado para o seu combate. Já nesta altura, contudo, Cavaco apelava aos compromissos e consensos alargados.

Com a crise económico-social e a troika ainda distante no horizonte, os problemas sociais traçados nesta altura pelo Presidente, nomeadamente em relação aos reformados, a quem Cavaco pedia para não serem sujeitos a mais sacrifícios, acabaram por manter-se ou agravar-se na sequência dos cortes aplicados aos rendimentos dos trabalhadores e pensionistas.