Uma sobrevivente de Auschwitz e um guarda nazi a pisarem o mesmo metro quadrado, em 2015, é algo difícil de imaginar. Ainda mais se juntarmos a essa imagem um abraço e um beijo na bochecha da senhora. Tudo aconteceu em mais um dia do julgamento de Oskar Groening, um ex-sargento das SS, de 93 anos, que terá contribuído para a morte de pelo menos 300 mil judeus em Auschwitz. Numa cadeira de rodas, o alemão cumprimentou Eva Mozes Kor, de 81 anos, e surpreendeu-a com um beijo.

Por mais que o coração tenha desintoxicado, o corpo sarado e a mente serenado, é difícil entender que uma mulher que foi alvo de variadas experiências médicas (para não falar de tudo o resto) consiga ter estômago para olhar nos olhos um homem que marcou tanto o seu passado, aquele que nunca largaria da mão o amanhã, o futuro. Quantos amigos e familiares terá perdido esta mulher? Quantas vezes terá o seu corpo pedido um stop e compaixão? Quantas vezes acreditou que ia morrer, que era o fim? Esta é a história sobre quando o ódio perde a batalha.

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Mas, afinal, como foi possível tal episódio no tribunal? “O perdão é a maior vingança de todas”, explicou Eva Mozes Kor, numa crónica no The Times, onde fala abertamente de ressentimentos, do passado, da atitude do alemão e das consequências de tal fotografia. “Enquanto falava com ele, ele agarrou-me e deu-me um beijo na bochecha. Bom, provavelmente eu não teria ido tão longe, mas acho que é melhor do que ele teria feito há 70 anos”, escreveu também no Quora, num texto onde explicou por que se deslocou até Hamburgo. Um beijo na bochecha é melhor do que um extermínio em massa, com experiências macabras pelo meio. Esta comparação tem tanto de óbvia como de assombrosa, pelo (falso) relativizar da coisa.

“Perdoei os nazis e todos os que me fizeram mal, mas disse-lhe que o meu perdão não evitava que eu o acusasse ou que lhe retirasse a responsabilidade pelos seus atos”, continuou no mesmo texto. “Eu disse aos media que ele era um pequeno parafuso numa grande máquina de matar, e que a máquina não funciona sem os pequenos parafusos. Mas obviamente ele é um ser humano. A sua atitude para comigo foi exatamente o que falei sobre ser impossível prever o que acontece quando alguém do lado das vítimas conhece alguém do lado dos criminosos num espírito de humanidade.”

No mesmo texto no Quora, Eva Kor explica o que procurava quando decidiu deslocar-se até Hamburgo, cidade alemã onde está a decorrer o julgamento. A primeira razão prende-se com o primeiro encontro entre ambos, que acabou de uma forma “estranha” e brusca. “No primeiro dia do julgamento, apresentei-me e estiquei a mão para cumprimentá-lo. Depois aconteceu a coisa mais estranha. Ele estava a tentar dizer-me algo (…), ficou branco e caiu para trás, sem dizer uma palavra. Ele estava a agarrar o meu braço para não cair no chão. Naquele momento ele não era um nazi, mas sim um homem velho que desmaiou e que eu tentava salvar de cair. (…) Essa não era a interação que eu esperava. Deixei KO um velho nazi.”

O sentimento que resulta do reencontro entre uma vítima e o vilão era algo que a deixava curiosa. “Não o podes prever”, antecipara. Na segunda tentativa, o alemão quis levantar-se para a cumprimentar, mas Eva não permitiu — “Por favor, não faça isso, não queremos uma repetição da última vez”. Esta mulher agradeceu-lhe depois o facto de ele estar disposto a enfrentar as vítimas, olhos nos olhos, e pediu-lhe que apelasse aos nazis que ainda estão vivos para resolverem o problema de hoje dos neonazis na Alemanha.

“Porque estes jovens alemães equivocados, que querem de volta Hitler e o fascismo, não ouvirão Eva Kor ou outra vitima”, disse a Oskar Groening. “Você pode dizer-lhes que esteve em Auschwitz, que esteve envolvido no partido nazi e que foi uma coisa terrível.”