Vamos já arrumar a parte que pode chocar os espíritos mais sensíveis, para não ficarmos o tempo todo com esse elefante no meio da sala. A 24 de Setembro de 1975, o deputado Costa Andrade, do PPD, estava a criticar os comunistas quando foi subitamente interrompido por Hermenegilda Pereira, do PCP. É mais prudente não usar adjectivos para descrever o que se seguiu:
“Hermenegilda Pereira: Cala-te, reaça!
Uma voz: Cala-te, porca!
Hermenegilda Pereira: Porca era a tua mãe!”
Pronto, já passou. Pausa para respirar. OK. Só mais um bocadinho: inspire; expire. Muito bem. Agora que despachámos este assunto, podemos recomeçar. Cá vai.
Na Assembleia Constituinte, alguns deputados destacavam-se pelos seus conhecimentos jurídicos, outros pelo seu peso político e outros ainda pela sua capacidade de persuasão. Hermenegilda Pereira, do PCP, e Pedro Roseta, do PPD, eram conhecidos por serem dois dos “mais frequentes autores de apartes”.
Primeiro, as senhoras. “Mulher, mãe e operária”, Hermenegilda Pereira era uma aguerrida defensora do proletariado. Quando, a 8 de Outubro de 1975, Afonso Moura Guedes, do PPD, discursou contra aquilo que entendia serem os incentivos do PCP à “subversão”, ela provocou: “Querias um fato de macaco e um capacete na cabeça…” A deputada do PCP não tolerava confusões. Durante a intervenção de outro adversário, atirou: “Não olhes para aqui, para aquele lado é que estão os apoios do Cupertino de Miranda. Aqui só há operários. (…) Fala para a direita. Ali é que está o capital!”
Definitivamente, Hermenegilda não queria misturas. Um deputado do PPD teve a ousadia de argumentar que as posições dos comunistas acabavam por criar um clima favorável a organizações de extrema-direita como o ELP (Exército de Libertação de Portugal) e ouviu:
“Os operários não são do ELP. Tu e a tua raça é que são!”
A deputada era implacável com aqueles que não pertenciam ao proletariado. Ao descrever uma troca de tiros numa manifestação de apoio ao VI Governo, um deputado provocou a ironia de Hermenegilda: “Coitadinhos!”. Mas, normalmente, a operária comunista dispensava subtilezas com duplo significado. Digamos que preferia o Parque Mayer ao Teatro D. Maria II. Suba o pano.
Cena 1:
“Alfredo de Sousa (PPD): O capitalismo de Estado não é um fantasma, mas sim uma realidade que se implantou em vários países, e como realidade que é constitui uma categoria analítica que, como sabem, tem sido largamente estudada apesar da feroz oposição da dogmática escola de Moscovo. É uma realidade que o seu repúdio na Checoslováquia foi sufocado por uma invasão repressiva”.
Hermenegilda Pereira: Tanta asneira de um doutor.”
Cena 2:
“José Luís Nunes (PS): Foi na base destes princípios que agora se pretende pôr em causa o direito de voto secreto. Mas aqui o PCP e o MDP cometem um erro histórico, porque pensam na sua oportunidade e na sua força presente e esquecem-se que o voto secreto é uma garantia contra as manipulações dos factores e contra o seu abuso sobre as classes trabalhadoras.
Hermenegilda Pereira: Vai trabalhar e depois defende a classe operária.”
Cena 3:
“Mota Pinto (PPD): Todos os cidadãos amantes da democracia e da liberdade, seja qual for a sua opção partidária, têm de estar cientes da amplitude do movimento totalitário que se pretende desencadear contra a esperança de democracia que é o VI Governo, esperança vivida pelo povo português e que ainda há dias constatei animar a Assembleia dos Parlamentares do Conselho da Europa.
Hermenegilda Pereira: Para tu ires passear, ando eu a butes.”
“Veja-se ao espelho”
A dada altura, a deputada parecia ter uma obsessão: desse por onde desse, queria pôr Américo Natalino Viveiros, do PPD, em frente de um espelho. A primeira tentativa não teve resposta:
“Levy Baptista (MDP/CDE): Não podemos deixar de ressalvar aqui os efeitos políticos que as forças conservadoras, as forças de direita, os reaccionários e mesmo as forças fascistas irão tirar, efeitos de pressão política sobre votações de eleições no continente tiradas a partir de eleições feitas em zonas politicamente mais atrasadas.
Américo Viveiros: Salazar falava assim.
Hermenegilda Pereira: Se calhar nunca se viu ao espelho.”
Mas da segunda vez a deputada já não escapou sem feridas:
“Hermenegilda Pereira: Veja-se ao espelho.
Américo Viveiros: A si não a posso ver, nem a conheço de sítio nenhum, está bem?!”
A deputada comunista não gostava mesmo nada de perder tempo com o humor. A 26 de Setembro de 1975, Santos Silva, do PPD, estava a usar a ironia para criticar a bancada do PCP quando a operária explodiu: “Estamos no teatro, ou quê?”. O social-democrata não perdoou. Dirigindo-se ao Presidente da Assembleia, sugeriu: “Peço a V. Ex.ª que mande distribuir tranquilizantes”. Com a hiperactiva Hermenegilda Pereira, eles não funcionariam.
O “arcanjo”
Outro hiperactivo político sentava-se na bancada do PPD. Pedro Roseta tinha apenas 32 anos e era muito próximo de Francisco Sá Carneiro. Unanimemente considerado um dos homens mais cultos do grupo parlamentar do PPD, escolhia como principais alvos as bancadas do PCP e do MDP/CDE. Nunca deixava escapar uma oportunidade de interromper os discursos dos seus deputados para lhes lembrar a sua dependência ideológica em relação à União Soviética.
Era um ritmo alucinante. A 9 de Outubro de 1975: “Aliados de Hitler, calem a boca”. A 16 de Outubro: “Vocês, que estão ao serviço do estrangeiro”. A 7 de Janeiro de 1976: “Tu és representante do estrangeiro”. A 4 de Fevereiro: “São lacaios”. A 11 de Março: “E os partidos do estrangeiro? E os partidos do Leste?”. A 17 de Março: “Fala o KGB!”. A 18 de Março: “Cala a boca, social-fascista, lacaio da URSS”. Quando, em resposta, a extrema-esquerda o acusava de representar a reacção, socorria-se do manual de boas maneiras: “Além de marxistas, são malcriados”.
Alguns adversários diziam, a brincar, que tinha “um ar de arcanjo”; outros afirmavam, a sério, que era um “provocador”. Mas quase todos acabavam por perder a cabeça. Eram raros os que mantinham a cabeça fria. Um que conseguiu fazê-lo foi Teles Grilo, do PS. Ouviu, encaixou e preparou uma resposta elaborada:
“O Sr. Deputado Pedro Roseta parece que não está, e eu pedia ao líder parlamentar do PPD que lhe transmitisse a seguinte nota: é que o Sr. Deputado Pedro Roseta considera-me um irresponsável e eu considero o Sr. Deputado Pedro Roseta um responsável. Do que tenho a certeza é de que ambos estamos enganados.
(Gargalhadas.)
(Aplausos.)”
Fontes:
Diários da Assembleia Constituinte
“A Revolução e o Nascimento do PPD”, de Marcelo Rebelo de Sousa
“Cenas Parlamentares”, de Victor Silva Lopes