Discretamente erguida no centro da província mais a sul de Espanha – a Andaluzia – está uma cidade onde não existe nenhum polícia. Nem é preciso: apesar de ficar na região mais pobre do país vizinho, Marinaleda não assiste a nenhum crime desde 1979.

Na verdade, houve um em agosto do ano passado. O presidente da Câmara, Juan  Manuel Sánchez Gordillo, organizou um protesto e assaltou supermercados. Depois entregou todos os artigos roubados à população pobre. Mas segundo o “Robin Hood espanhol”, tal não passou de um “ato de desobediência não violento”.

Também não existem desempregados em Marinaleda: nenhuma das 25% de pessoas sem trabalho em Espanha vive nesta cidade. Aqui todos trabalham numa cooperativa agrícola e recebem um salário de 1200 euros mensais.

Mais ainda: ninguém perde a casa por culpa da crise. Aliás, todos têm autorização para construir um lar gratuitamente. A câmara oferece mesmo os materiais para a obra e entrega um subsídio de 195 euros por cada metro quadrado. Depois, basta pagar quinze euros mensais até ao fim da vida e apenas não podem vender a casa para benefício privado.

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Há sempre dois lados para uma história

A descrição é feita assim, nestes termos, pela Peaceful Warriors, com descrição do que parece ser um paraíso na Terra, onde os conceitos de socialismo e de democracia parecem funcionar em pleno. O autarca defende o seu modelo: “Precisamos de repensar os nossos valores, o consumismo da sociedade, a importância que damos ao dinheiro, o egoísmo e o individualismo”. Mas a verdade é que nem todos pintam a cidade tão bonita como ele.

Voltemos atrás à história do assalto ao supermercado, liderado pelo próprio autarca, o líder sindical Juan Manuel Sánchez Gordillo: para quê assaltar supermercados se o povo vive bem? O jornal ABC deu uma explicação: a cooperativa agrária estava a passar por sérios problemas económicos e o Fisco ameaçava congelar parte das suas contas por atrasos nos pagamentos à elétrica Endesa, para dar um exemplo. Só à Hidrográfica de Guadalquivir as dívidas atingiam 800 mil euros.

Segundo o Guardian, Marinaleda foi vítima de uma enorme bolha imobiliária: a construção (exclusivamente pública) de casas sociais na vila fez disparar o preço das habitações. Em 2008, com a crise financeira, tudo rebentou: o imobiliário, a produção, o financiamento da própria cidade. Nessa altura, Juan Manuel Sánchez Gordillo tentou de tudo: organizou por exemplo uma marcha com outros autarcas da região, reclamando o não pagamento das suas dívidas ao Estado; organizou o tal assalto a um supermercado.

O caso foi amplamente retratado pelos media. O autarca levou 30 apoiantes para uma cidade nas redondezas, e carregou dez carros com alimentos como azeite, açúcar, leite, legumes. Houve agressões, muitas críticas. A Esquerda Unida, partido por que tinha sido eleito Gordillo, chegou a dizer que o autarca estava “fora de controlo”.

Foi aí, diz a Intervíu espanhola, que o autarca assinou um acordo com o Governo da Venezuela (conhecido por financiar, por exemplo, o Podemos): com os conhecidos problemas de abastecimento em produtos básicos, como arroz, açúcar, o Governo de Nicolás Maduro assinou um acordo com a cooperativa de Marinaleda. Um detalhe: apesar dos problemas financeiros da própria Venezuela, o preço do azeite que seria importado era o dobro do preço de mercado.

Mas há, em Espanha, jornais que contam outras histórias sobre Marinaleda. Como a história das ocupações de terrenos, com pressão política, de uma forte subvenção anual dada pela Junta da Andaluzia, também de uma câmara que cobra prémios aos seus cidadãos. E até de opressão política – contada pelo único autarca eleito pelo PP, cujo automóvel chegou a ser apedrejado.

Um jornalista holandês, atraído pela ideia de uma utopia socialista, foi lá e percebeu que ninguém pode sair de casa sem que a autarquia fique com a propriedade. Também soube que antes da expropriação dos terrenos da cooperativa, a taxa de desemprego era de 70%. Viu que na vila só há dois cafés, nenhum restaurante, e apenas duas pequenas mercearias. Mas que tem uma piscina gigante, de que o alcaide muito se orgulha. E falou com um cidadão, crítico do autarca, que diz que ele quer decidir até o que se produz na cooperativa – “mesmo não percebendo nada de agricultura”.

Javier Caraballo, colunista do El Confidencial, fez em plena crise do supermercado uma crónica sobre a cidade – e sobre a campanha que os “Indignados” faziam naquela altura com o seu sucesso. O título dizia assim: “Si España fuera Marinaleda. Historia de una mentira“.