Portugal já teve três referendos mas uma consulta popular como aquela que vai decorrer no domingo na Grécia seria impossível – tanto no prazo escolhido como no próprio tema.
A lei portuguesa diz taxativamente que não se pode fazer perguntas sobre alterações à Constituição, “as questões e os atos de conteúdo orçamental, tributário ou financeiro” ou alterar competências da Assembleia da República, à exceção das bases do sistema de ensino. Ou seja, não se poderia inquirir os portugueses sobre um acordo com a troika que tem consequências financeiras, como é o caso da Grécia. A lei vai ao ponto de proibir “iniciativas de referendo que envolvam, no ano económico em curso, aumento de despesas ou diminuição de receitas do Estado previstas no Orçamento”.
A proposta para o referendo pode ser feita pelo Governo ou pela Assembleia da República, desde que incidam sobre matéria legislativa ainda em processo de apreciação, ou seja, antes da votação final global.
Um referendo marcado para daí a oito dias, como o grego, também seria uma miragem. Em cada um dos referendos que existiu em Portugal – e foram três -, passou quase cinco meses entre a aprovação da pergunta do referendo pelo Parlamento e a sua realização.
A lei define muito claramente os vários passos. E estes são muitos.
Nos oito dias subsequentes à publicação da resolução da Assembleia da República ou do Conselho de Ministros, o Presidente da República tem que submeter ao Tribunal Constitucional a proposta de referendo, para efeitos de fiscalização preventiva da constitucionalidade e da legalidade, ou seja, a pergunta tem que passar no crivo.
“As perguntas são formuladas com objetividade, clareza e precisão e para respostas de sim ou não, sem sugerirem, direta ou indiretamente, o sentido das respostas. As perguntas não podem ser precedidas de quaisquer considerandos, preâmbulos ou notas explicativas”, diz a lei, acrescentando que cada referendo recai sobre uma só matéria e não pode ter mais de três perguntas.
O Tribunal Constitucional tem 25 dias para se pronunciar, mas o prazo pode ser encurtado pelo Presidente da República por motivo de urgência. Se o TC chumbar a pergunta, o referendo não se pode verificar e o Parlamento ou o Governo têm que reformular a proposta. Se for aprovada, o Presidente tem 20 dias para decidir a convocação do referendo, sendo que este tem a liberdade de se opor e pode decidir não marcar referendo nenhum. Nesse caso, a proposta de referendo não pode ser apresentada de novo na mesma sessão legislativa.
Tal como numa eleição, o referendo em Portugal é também precedido de uma campanha com igual duração, 12 dias. Até ao 30º dia anterior, os partidos, coligações ou grupos de cidadãos têm que declarar na Comissão Nacional de Eleições se pretende ou não entrar na campanha. “Os partidos que não hajam declarado pretender participar no esclarecimento das questões submetidas a referendo não têm o direito de acesso aos meios específicos de campanha”, lê-se.
Grupos de cidadãos também podem propor um referendo, mas essa proposta tem que ser subscrita por 75 mil pessoas, pelo menos, e tem que ser aprovada pela maioria dos deputados.
O referendo estava previsto na Constituição desde o início, mas nunca foi utilizado até 1998, altura em que foi aprovada a lei orgânica do regime do referendo através de um acordo PS/PSD (António Guterres/Marcelo Rebelo de Sousa). Nesse ano, realizaram-se as consultas sobre a despenalização do aborto e sobre a regionalização do país. Tanto num caso como noutro ganhou o ‘não’. A despenalização do aborto só viria a ser aprovada num segundo referendo em 2007.
O primeiro teve a ver com a interrupção voluntária da gravidez e o processo teve início a 31 de março, quando a Assembleia da República apresentou a seguinte questão ao Presidente: “Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?”. A pergunta foi aprovada pelos deputados depois de longas negociações e várias propostas diferentes. Jorge Sampaio, então Presidente da República, concordou com a realização do mesmo a 28 de abril. A votação viria a realizar-se no dia 28 de junho e ganhou o não com 50,9% dos votos – o sim obteve 49,1% e 31,9% dos eleitores foram votar.
Ainda nesse ano, aconteceu outra consulta popular, desta vez relativa à regionalização. Foi logo no dia a seguir à realização do referendo ao aborto, que a Assembleia da República fez chegar ao Presidente o pedido para esta consulta. O pedido era composto por duas perguntas: uma de âmbito nacional – Concorda com a instituição em concreto das regiões administrativas? – e outra de âmbito regional – Concorda com a instituição em concreto da região administrativa da sua área de recenseamento eleitoral? – no mesmo boletim. Assim, estas deram entrada em Belém a 29 de junho e o Presidente decidiu a favor deste referendo a 1 de setembro e a consulta popular realizou-se a 8 de novembro. O não a nível nacional ganhou com 63,52% e também saiu vitorioso em todas as regiões portuguesas. 48,12% dos eleitores votaram nesta eleição.
Quanto ao segundo referendo sobre o aborto, a proposta desta nova consulta chegou ao Presidente a 20 de outubro de 2006. O Presidente Cavaco Silva aprovou a realização deste referendo a 30 de novembro de 2006, com a pergunta igual à de 1998, ou seja, “Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?”. O referendo aconteceu no dia 11 de fevereiro de 2007 e o sim venceu com 59,25% dos votos e contou com a participação de 43,57% dos eleitores. Houve uma primeira tentativa de se fazer o referendo em 2005, mas o TC entendeu que essa matéria já tinha sido alvo de decisão na mesma sessão legislativa e negou assim a pretensão.
Houve pelo meio uma tentativa de referendo falhada, com a Assembleia da República a pedir ao Presidente para consultar os portugueses sobre o Tratado Europeu que visava a criação de uma Constituição comunitária. O Tribunal Constitucional votou contra a pergunta enviada pelo Parlamento – “Concorda com a Carta dos direitos fundamentais, a regra das votações por maioria qualificada e o novo quadro institucional da União Europeia, nos termos constantes da Constituição para a Europa?” -, alegando que esta não tinha sido”formulada com clareza”, ficando assim “prejudicada a verificação dos outros requisitos de constitucionalidade e de legalidade”. Devido à agitação política nacional com a queda do Governo de Santana e a rejeição de outros países em relação a este tratado, o tema nunca foi retomado. Portugal acabou por ratificar o Tratado de Lisboa em 2008 sem recurso a referendo e aquele entrou em vigor no final 2009.
Já em 2014, a Assembleia aprovou uma pergunta sobre a coadoção gay, que acabou também chumbada pelo Tribunal Constitucional. A existência de duas perguntas, uma sobre adoção plena e outra sobre coadoção, dificulta, no entender dos juízes do palácio Ratton, a «perfeita consciencialização» por parte dos cidadãos. E podia levar «à contaminação recíproca das respostas, não garantindo uma pronúncia referendária genuína e esclarecida». Por outro lado, os juízes entenderam que o referendo limitava o universo eleitoral, ao excluir os eleitores residentes no estrangeiro. As perguntas eram «Concorda que o cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo possa adotar o filho do seu cônjuge ou unido de facto?» e «Concorda com a adoção por casais, casados ou unidos de facto, do mesmo sexo?».