Título: Sapiens: História breve da humanidade
Autor: Yuval Noah Harari
Tradução: Rita Carvalho e Guerra
Editora: Vogais
Páginas: 493
Preço: 21,98€
Os credores reclamam o dinheiro emprestado aos gregos, estes dizem que não o podem pagar, os credores tomam medidas para recuperar o seu dinheiro. A situação é descrita a meio de Sapiens, mas o livro foi publicado em 2011 e o Professor Harari não é um Professor Karamba: os acontecimentos que refere não tiveram lugar em 2015 mas em 1826-27.
Em 1821, os gregos tinham-se revoltado contra o domínio turco, um gesto que despertou a simpatia genuína de muitos britânicos (e outros europeus) e o interesse dos financeiros da City. A guerra é terrivelmente dispendiosa e os gregos não dispunham de meios para a pagar, pelo que os financeiros “propuseram aos líderes rebeldes a emissão de Obrigações da Revolta Grega, negociáveis no mercado bolsista de Londres. Os gregos prometiam pagar as obrigações, com juros, se e quando obtivessem a independência.”
A cotação das obrigações foi oscilando consoante a sorte das armas, mas a partir de certa altura os turcos começaram a ganhar vantagem. Perante a perspectiva de os investidores britânicos perderem o dinheiro empatado nas Obrigações da Revolta Grega, o governo britânico achou por bem defender os interesses dos seus cidadãos e, com a ajuda de franceses e russos, que conseguiu aliciar para a sua causa, enviou uma esquadra para o Mediterrâneo Oriental, que derrotou a esquadra turca na batalha de Navarino, em 1827.
A Grécia ficou livre, mas com uma enorme dívida para pagar aos credores. Embora Harari não o mencione, a dívida era apenas um dos problemas dos gregos, já que a Grã-Bretanha, a França e a Rússia sentiram-se autorizadas, dada a sua “generosa” intervenção “humanitária”, para interferir nos assuntos internos do novo país e impuseram-lhe como rei Otto de Wittelsbach, um príncipe bávaro que tinha apenas 17 anos quando subiu ao trono de um povo cuja língua não falava.
A narrativa de Harari omite também que boa parte do dinheiro investido nas obrigações – nuns casos por solidariedade para com o povo grego, noutros só com o fito do lucro – acabou por ficar nas mãos de especuladores e intermediários financeiros da City e apenas uma parte chegou aos seus supostos beneficiários; por outro lado, também não diz que os revoltosos gregos logo se dividiram em facções e a guerra pela independência se converteu numa guerra civil, pelo que parte desse dinheiro foi malbaratado e usado não para expulsar os turcos mas para matar outros gregos.
Harari narra esta história como um exemplo da forma como, ao longo do século XIX, o capitalismo conseguiu pôr os Estados ao serviço dos seus interesses – neste caso, com escassos resultados imediatos, pois os subscritores das obrigações acabaram por não ver o seu dinheiro reembolsado e o governo grego só em 1878 liquidou a dívida (que entretanto crescera, devido aos juros, de 1.5 milhões de libras para 10 milhões).
Outros casos análogos seleccionados por Harari para ilustrar “o abraço entre o capital e a política” envolvem as Guerras do Ópio (1839-42 e 1856-1860), cujo fito foi obrigar a China a aceitar que os comerciantes britânicos pudessem continuar a vender livremente o ópio que alimentava o vício de dez milhões de chineses, e a intervenção britânica no Egipto em 1882, destinada a sufocar a revolta dos egípcios, que se recusavam a pagar as dívidas colossais contraídas para custear o Canal do Suez, bem como “empreendimentos de êxito muito inferior”.
Mas nem Sapiens se confina à história económica, nem ao século XIX. Na verdade, a sua ambição é desmedida: é fornecer uma perspectiva da história da Humanidade nos planos biológico, económico, político, religioso, social, tecnológico e ético, desde o aparecimento do Homo sapiens, há cerca de 200.000 anos, e tentar prefigurar o que será o seu futuro.
Dada a vastidão da empresa é natural que Harari omita a maioria dos momentos “canónicos” contemplados em todas as histórias da civilização – não estão cá as batalhas de Hastings, Waterloo ou da Normandia, Magna Carta, a queda de Constantinopla, o Grande Cisma do Ocidente ou a reforma protestante – e dirija o foco para eventos que, sendo menos conhecidos, foram determinantes para as grandes mudanças operadas na improvável trajectória do Homo sapiens.
Sapiens é uma daquelas obras que examinam a História a partir de grande altitude, como Armas, Germes e Aço, de Jared Diamond, O Domínio do Ocidente, de Ian Morris, ou A Riqueza e Pobreza das Nações, de David S. Landes, oferecendo uma perspectiva inovadora e suscitando questões que raramente são postas pelas histórias mais convencionais. Até porque Harari não se deixa intimidar pela “correcção política” e não hesita em fazer afirmações como “a evolução fez do Homo sapiens, como dos outros mamíferos sociais, uma criatura xenófoba. Os sapiens dividem instintivamente a humanidade em duas partes: ‘nós’ e ‘eles’”.
Isto não é, obviamente, uma justificação, e muito menos uma defesa, da xenofobia e do racismo: é assumir que tais atitudes estão profundamente enraizadas em nós e resultaram de milhões de anos de evolução. Ao contrário do que pensam os que crêem no “bom selvagem” de Rousseau, os nossos instintos têm muito de maligno, é a civilização que, muito lentamente, a muito custo e apesar de sucessivas recaídas, tem vindo a contrariar as nossas reacções primárias e a fazer o “nós” aceitar o “eles”.
Do ponto de vista estratosférico de Harari, a história da humanidade é marcada por três revoluções: a cognitiva, ocorrida há 70.000 anos, quando uma alteração ainda mal compreendida nos cérebros dos Homo sapiens os tornou em seres socialmente mais competentes e em caçadores terrivelmente eficazes; a agrícola, ocorrida há 10.000 anos, quando os homens começaram a deixar a caça e passaram “a dedicar quase todo o seu tempo e esforço a manipular as vidas de algumas espécies de animais e plantas”; e a científica, iniciada há 500 anos, quando “os seres humanos passaram a acreditar […] que podiam aumentar as suas capacidades investindo na investigação científica”.
Mas nem todas estas revoluções trouxeram necessariamente uma melhor vida ao Homo sapiens – tal como Jared Diamond e outros autores, Harari acredita que a vida dos primeiros agricultores era mais dura, infeliz e embrutecedora e menos saudável e igualitária do que a dos caçadores-recolectores.
Mas – e esse é um dos argumentos centrais do livro – cada uma destas revoluções altera tão drasticamente o contexto que torna impossível o regresso aos tempos pré-revolucionários. A revolução agrícola pode ter sido uma armadilha (“a maior fraude da história”, chama-lhe Harari), mas permitiu uma multiplicação dos agricultores – “a essência da Revolução Agrícola [foi] a capacidade de manter vivas mais pessoas sob piores condições” – que escorraçou os caçadores-recolectores para as paragens mais remotas e inóspitas do planeta.
Quanto aos povos que se tinham convertido em agricultores, não lhes passou pela cabeça voltar atrás: “se a adopção do arado fez aumentar a população de uma aldeia de 100 para 110, que 10 pessoas se teriam voluntariado para morrer à fome para que os restantes regressassem aos bons velhos tempos?”.
Tem sido um mecanismo deste tipo que tem empurrado a humanidade em frente, inexoravelmente, mas nem sempre para uma situação melhor para todos: “o bolo económico de 2013 é muito maior do que o de 1500, mas está de tal modo mal distribuído que os camponeses africanos e os trabalhadores indonésios regressam a casa, depois de um duro dia de trabalho, com menos comida do que os seus antepassados de há 500 anos”.
“Em 8500 a.C. era possível derramar lágrimas amargas sobre a Revolução Agrícola, mas era demasiado tarde para abdicar da agricultura. Da mesma forma, podemos não gostar do capitalismo mas não seríamos capazes de viver sem ele.” Por trás do carácter irreversível destas mudanças está “uma das poucas leis de ferro da História”: a de “que os luxos tendem a tornar-se necessidades e a gerar novas obrigações. Uma vez que as pessoas se habituem a usar um determinado luxo, tomam-no como certo. […] Por fim, chegam a um ponto em que já não conseguem viver sem ele”. É por isso que embora se ouçam vozes que comentam que a vida de outrora “é que era”, na verdade são muito poucos os que estão dispostos a renunciar aos gadgets, facilidades e confortos surgidos nos últimos dez anos, quanto mais a aceitar viver num mundo pré-industrial.
Harari é impiedoso ao analisar as contradições e hipocrisias do mundo moderno – aponta, por exemplo, que “a população dos EUA gasta mais dinheiro em dietas do que o necessário para alimentar todas as pessoas famintas do mundo. A obesidade é uma dupla vitória para o consumismo. Em vez de se comer pouco […] as pessoas comem demasiadamente e depois compram produtos para emagrecer”. E é também de forma implacável que explica o sucesso da articulação do capitalismo com o consumismo: “A maioria dos cristãos não imitou Cristo […] e a maior parte dos confucionistas deixaria Confúcio em desespero”, mas o capitalismo-consumismo “é a primeira religião na História cujos seguidores fazem, realmente, o que lhes é pedido”. “A nova ética promete o Paraíso na condição de os ricos se manterem gananciosos e passarem o seu tempo a ganhar mais dinheiro e de as massas darem rédea solta aos seus desejos e paixões.”
Obstando a “lei de ferro” acima mencionada a que arrepiemos caminho por vontade própria, poderemos, contudo, ser obrigados a mudar de vida por imposições externas: é que o nosso modo de vida está a consumir recursos a uma velocidade vertiginosa e a gerar quantidades colossais de resíduos e desequilíbrios ambientais que podem tornar o planeta num lugar pouco aprazível. É aqui que a perspectiva de Harari revela falhas graves: embora não menospreze os efeitos nefastos da degradação ambiental sobre as sociedades humanas, após levantar o problema de um previsível esgotamento de matérias-primas e energia, conclui que “os recursos à disposição da humanidade estão constantemente a aumentar e é provável que tal continue a acontecer”.
Como pode alguém bem informado e inteligente acreditar que as reservas de matérias-primas no planeta se dilatarão magicamente para atender ao nosso apetite cada vez mais sôfrego? Algumas inovações tecnológicas, a reciclagem e melhores métodos de gestão poderão dilatar a duração de algumas reservas, mas mais tarde ou mais cedo atingiremos o limite. O facto de, até agora, termos encontrado alternativas ou descoberto novas reservas não justifica o optimismo cego de Harari, que faz levantar a anedota do fulano que salta do alto de um arranha-céus e que, à medida que vai passando pelos sucessivos andares, repete para consigo “Até aqui, tudo bem”.
O trecho que dedica à suposta disponibilidade de fontes de energia para a humanidade revela impreparação e raciocínios superficiais e ingénuos. Começa logo mal quando afirma que “um exajoule é um milhar de milhões de joules”. Um milhar de milhões é 109, um exajoule é 1018 (um trilião) de joules – são nove zeros de diferença. Depois deita contas às quantidades colossais de energia solar que atingem a Terra anualmente (3.850.000 exajoules) e considera que “todas as centrais do mundo captam apenas 3000 desses exajoules solares através da fotossíntese”.
Apesar da desconcertante menção a “centrais”, dir-se-ia que Harari se refere à energia solar convertida em biomassa pela fotossíntese, que é com efeito de 3000 exajoules. Dir-se-ia também que crê que esta quantidade podia ser muito maior, como se pudessem ser criados uns ecossistemas aditivados, mais eficazes a absorver e converter a energia solar. Quando considera que o consumo total de energia pela humanidade é de “apenas” 539 exajoules, conclui, entusiástico, que temos à nossa disposição “um enorme oceano […] que encerra em si milhares de milhões de exajoules de energia potencial. Tudo o que precisamos é de inventar bombas melhores.”
Harari não percebe que não serve de nada esta abundância de energia porque a maioria é tão diluída que não é passível de aproveitamento. As diferentes formas sob as quais a energia pode apresentar-se não são todas equivalentes: o sol é eficaz a secar a roupa e a fazer crescer erva, mas não é capaz sequer de fazer ferver água ou mover um automóvel, a não ser que seja concentrada e transformada, o que requer dispositivos cujo fabrico, operação e manutenção custam dinheiro, matérias-primas e energia e implicam desgastes e perturbações no ambiente.
A energia que tem alimentado o desenvolvimento explosivo nos últimos dois séculos provém de fontes de energia altamente concentradas, mas os combustíveis fósseis que estamos a consumir a uma taxa avassaladora foram acumulados durante centenas de milhões de anos, pelo que, em termos práticos, a sua taxa de reposição é nula. Quanto às fontes de energia renovável, algumas já estão a aproximar-se do limite do que é possível extrair – é o caso da energia hidroeléctrica em Portugal – e outras não encerram potencial para produção significativa, mesmo que se inventem “bombas melhores” – é o caso da energia das marés ou da energia térmica dos oceanos – e outras ainda envolvem impactos ambientais significativos – é o caso dos biocombustíveis. Outras ainda, como a conversão em electricidade do movimento dos peões sobre o pavimento, não passam de especulações ociosas e de “engraçadismo” científico. E é preciso não esquecer que a maior parte da energia solar que atinge a Terra e não é “aproveitada” desempenha funções vitais para a vida no planeta, aquecendo o planeta e fazendo circular gigantescas massas de ar e água.
Um aspecto particularmente inovador de Sapiens é interrogar a evolução da humanidade do ponto de vista da felicidade: será o cidadão de classe média-alta dos países desenvolvidos – o leitor típico de um livro desta natureza – que se afadiga a colocar selfies no Facebook mais feliz do que “os caçadores-recolectores anónimos de há 30.000 anos que deixaram as impressões das suas mãos numa parede de uma gruta de Chauvet?”
Considera Harari que “até agora, os historiadores […] investigaram a história de quase tudo – política, sociedade, economia, género, doenças, sexualidade, alimentação, vestuário – mas […] raramente pararam para se perguntar em que medida é que estes factores influenciam a felicidade humana. Esta é a maior lacuna no nosso entendimento da História”.
Harari cruza a informação histórica com os mais recentes estudos nas áreas da psicologia, da neurociência e da economia comportamental e conclui que, se como tudo indica, “a felicidade é determinada pelas expectativas, então dois pilares da nossa sociedade – os meios de comunicação social de massas e a indústria da publicidade – podem, involuntariamente, estar a esvaziar os reservatórios de contentamento do mundo”.
A edição portuguesa enferma de algumas pequenas deficiências – um erro de formatação tornou caótico o quadro da pg. 186 e o diagrama da pg. 370 está errado (é a economia pré-moderna que se caracteriza por crescimento lento) – e de uma omissão indesculpável – o índice remissivo, que ocupa 10 páginas na edição original, foi suprimido, o que torna a consulta impossível.
Nem por isso deixa de ser um livro de primeira grandeza, que deveria ser de leitura obrigatória para todos os que têm poder para decidir por onde vamos – políticos, economistas e decisores em geral – impelidos tantas vezes por cálculos mesquinhos, visões parcelares e tacanhas do mundo ou pelo simples espírito ovino de marchar com o rebanho. “Estamos mais poderosos do que alguma vez estivemos, mas não fazemos a mínima ideia do que fazer com todo esse poder, [e] estamos a espalhar o caos sobre os nossos companheiros animais e o ecossistema envolvente, em busca de pouco mais do que o nosso próprio conforto e divertimento, sem, no entanto, nos darmos por satisfeitos.”