Em 2014, os descontos para a ADSE (subsistema de saúde dos funcionários e pensionistas do Estado) aumentaram para 3,5% do salário ou pensão. A medida foi polémica, Cavaco Silva chegou a devolvê-la ao governo, e agora uma auditoria do Tribunal de Contas vem dar razão a muitas das críticas feitas a esta decisão.
A auditoria conclui que o aumento das taxas foi claramente excessivo face ao objetivo da auto-sustentabilidade, pelo que se gerou um excedente de 138,9 milhões de euros face às necessidades de financiamento. E estes “excedentes estão a ser utilizados em proveito do Estado, como forma de resolver problemas de equilíbrio do Orçamento de Estado, através do aumento artificial da receita pública“, denuncia a auditoria.
O aumento da taxa de desconto partiu de uma proposta do governo que “não resultou de necessidade de financiamento de curto ou médio prazo da ADSE”, mas da necessidade imposta pelo memorando, “de compensar a redução do financiamento público do sistema”.
Mas antes de decidir esta subida para 3,5%, não foi realizado qualquer estudo sobre a sustentabilidade do sistema de saúde, no médio e longo prazo, nem houve qualquer ajustamento ao esquema de benefícios assegurado. Em sede de contraditório, o anterior diretor-geral da ADSE justifica a inadequação da taxa de desconto definida pelo governo como uma tentativa de compensar a extinção da contribuição da entidade empregadora, que resultou na soma das duas taxas (pagas por beneficiários e entidades públicas).
Não se terão apercebido que cada taxa tinha uma base de cálculo distinta… pelo que a receita gerada pela contribuição da entidade empregadora era possível de conseguir com um aumento muito inferior da taxa de contribuição do beneficiário (…) Depois da experiência de 2014, poderá questionar-se o reajustamento da taxa de contribuição do beneficiário ainda em vigor de 3,5%.”
O Tribunal de Contas (TdC) conclui que não há qualquer fundamentação para esta situação de excedente, que aliás se mantém em 2015, não obstante até se prever uma receita com descontos ainda maior, de 546 milhões de euros.
Bastava ter aumentado os descontos para 2,7%
Segundo o TC, um estudo sobre as necessidades de tesouraria da ADSE teria concluído que, para 2014, “apenas seria necessária uma taxa de desconto aproximada de 2,7% para cobrir integralmente aqueles custos. Uma taxa de 2,95% já garantiria um excedente de 10%, que constituiria uma reserva de segurança”.
O aumento excessivo das contribuições foi um dos argumentos de Cavaco Silva para mandar de volta a lei ao governo. Também a UTAO (Unidade Técnica de Apoio Orçamental) tinha alertado para a criação de um excedente que iria financiar o Estado. O governo manteve o desconto nos 3,5%, tendo apenas salvaguardado que eventuais excedentes não seriam usados para outras despesas fora da ADSE, que é tutelada pelo Ministério das Finanças.
Só que o Tribunal assinala que apesar dessa consignação, a receita proveniente dos descontos dos quotizados é contabilisticamente receita de um serviço integrado do Estado, pelo tem um reflexo direto nas receitas do Orçamento do Estado, beneficiando o défice público. Por outro lado, o regime da ADSE limita a autonomia administrativa da entidade que pouco pode fazer com os excedentes que resultam das contribuições. “Não os pode utilizar livremente”, seja para pagar despesas de saúde, seja para aplicar esses excedentes e obter retorno.
“Pelo contrário, é o Estado quem tem beneficiado da utilização desses excedentes provenientes dos quotizados da ADSE, a uma taxa de 0%, isto é, sem qualquer remuneração paga à ADSE”, com prejuízo para os quotizados.
Não trazendo qualquer vantagem, estes excedentes, conclui o Tribunal, servem “apenas propósitos de consolidação orçamental das finanças públicas que não são compatíveis com um sistema financiado por fundos privados, afetos a fins privados, e por isso alheios ao Estado”.
Não será por acaso. O aumento das contribuições de 2,5% para 3,5% foi aprovado em janeiro de 2014 como parte de um pacote que tinha como finalidade ajudar a tapar o buraco criado pelo chumbo do Tribunal Constitucional a medidas de consolidação orçamental (neste caso a convergência entre as pensões do Estado e da Segurança Social”.
As conclusões desta auditoria assentam na realidade entre 2011 e 2014, período em que o governo concretizou o objetivo de garantir a sustentabilidade da ADSE apenas com descontos dos beneficiários, o que implicou não só a eliminação do financiamento público, mas também das contribuições das entidades empregadoras do Estado. Mas se esta parte foi cumprida, até demais, a ADSE continuou, por outro lado, a financiar despesas que são da responsabilidade do Serviço Nacional de Saúde, das regiões autónomas e ou da entidade empregadora pública. Estas despesas extra já são financiadas pelos impostos. Pelo que contribuintes deste sistema estão a pagar duas vezes. A auditoria denuncia “numa dupla tributação do rendimento pessoal desses quotizados”.
Alguns exemplos de encargos que têm um custo estimado de 40 milhões de euros:
- Comparticipação do Estado no preço dos medicamentos
- Cuidados respiratórios em casa prescritos pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS)
- Transporte de doente de e para entidades do SNS
- Meios complementares de diagnóstico (exames) e terapêutica prescritos em entidades do SNS
- Verificação domiciliária de doença e realização de juntas médicas a pedido de entidades empregador
Alerta ainda o Tribunal para o facto da responsabilização financeira da ADSE por prestações a que os seus beneficiários têm direito como utentes do Serviço Nacional de Saúde estar na origem de “práticas discriminatórias dos primeiros face aos cidadãos em geral (…) que podem influenciar decisões de renúncia ao esquema de benefícios da ADSE”.
Entre 2011 e 2014, verificaram-se 4009 renúncias à ADSE, sendo que 74% destas saídas aconteceu no ano passado.
Aliás, para o TdC, em vez de assegurar a sustentabilidade, a decisão de aumentar a taxa de desconto prejudicou a sustentabilidade da ADSE, uma vez que resultou no afastamento de quotizados, com a agravante do maior número de saídas ter ocorrido nos escalões de contribuição superiores, para os quais os seguros privados de saúde podem ser mais atrativos.
Quem paga e beneficia da ADSE
A ADSE (Assistência na Doença aos Servidores Civis do Estado) tem 1,3 milhões de quotizados a quem proporciona o recurso a prestadores de serviços de saúde em dois regimes: convencionado, em que o custo é partilhado com o beneficiário nos prestadores que têm contrato com o sistema, e o livre, em que o beneficiário escolhe o prestador e paga, e depois é parcialmente reembolsado pela ADSE.
No universo abrangido pela ADSE, que inclui trabalhadores e pensionistas, há quase meio milhão de beneficiários que não contribuem para o financiamento e que representam 40% do total. Entre estes estão os beneficiários isentos, os pensionistas com reformas mais baixas, neste caso são 41.713, mais os seus 389.178 beneficiários familiares, em que se incluem os descendentes diretos até aos 19 anos, são a fatia mais significativa. Há ainda quotizados e beneficiários na Madeira e Açores, cujos descontos não lhe são entregues pelas entidades empregadoras.
No total, a ADSE tem 851 mil beneficiários contribuintes, ou seja, que pagam, e 425 mil que não pagam, e que são sobretudo familiares dos primeiros.
O subsistema público entidade é uma das mais importantes financiadoras dos serviços privados de saúde – em conjunto com outros subsistemas do Estado (das forças de segurança) financiou mais de 20% da despesa em hospitais privados em 2012. Considera por isso o Tribunal que por ser um dos maiores, se não o maior, tem um forte poder negocial.
Desde 1999, a ADSE sofreu várias alterações que reduziram o financiamento do Orçamento público, entretanto já eliminado, e pelo aumento dos descontos cobrados aos beneficiários que subiu 158% entre 2009 e 2014.
Com a evolução no modelo de financiamento para fundos é preciso reconfigurar a ADSE para assegurar a sua sustentabilidade como sistema de proteção social e eliminar práticas que o Tribunal qualifica de discriminatórias que podem levar à saída dos contribuintes. O TdC alerta ainda para a importância de promover a entrada de novos beneficiários e permitir o regresso dos que saíram.
Em contraditório, o Ministério das Finanças lembra que os subsistemas devem ser complementares ao Serviço Nacional de Saúde e que está a ser feito um levantamento para identificar e propor os encargos que devem passar para o SNS. O TdC defende que é urgente a transferência desses encargos, dado que existe já este ano o risco do desconto dos quotizados virem a financiar o SNS e os serviços regionais de saúde e das regiões autónomas. Esta situação contraria a lei de 2014 que consignou esses descontos ao pagamento de benefícios concedidos apenas pela ADSE, o que exclui os serviços a que estes quotizados tem direito como contribuintes e utentes do Serviço Nacional de Saúde.
O secretário de Estado da Administração Pública, José Leite Martins, recusou comentar a auditoria esta sexta-feira, argumentando que o aumento dos descontos para a ADSE não eram matéria da sua delegação de competências. Leite Martins tem a tutela da função pública e já esteve no parlamento no passado (em abril de 2014) a justificar esta subida dos descontos. A tutela do subsistema passou para o Ministério da Saúde, mas à data abrangida pela auditoria ainda estava nas Finanças.
Leite Martins falava numa audição parlamentar sobre a Cresap, a comissão de recrutamento do Estado.