Ninguém dá nada pela rua quando olha para ela pela primeira vez. Duas fileiras de prédios dos anos 1970 ou 1980, sem grande história ou arte, compõem uma artéria que não teria graça nenhuma não fosse a um canto estar um homem de alpercatas às riscas vermelhas a grelhar sardinhas e carapaus. Vítor, o Cantador, maneja tão bem a grelha quanto a língua e logo às primeiras frases ouvem-se-lhe piadas que não podemos escrever aqui. Depois, reparando em cara nova por aquelas bandas, entrega um cartão cor-de-rosa a imitar as antigas cartas de condução e logo ali se nota o espírito da casa. “Encerramos ao domingo para descanso dos clientes”, lê-se. Com Vítor Cantador e a sua tasca Castiça, ao Lumiar, em Lisboa, é assim.

Como diria outro, em Lisboa há tascas às resmas, às paletes. Tiago Cruz, um publicitário com gosto pelo petisco, pelo copinho de tinto e pela boa conversa tarde fora, achou que estava na altura de alguém pôr em livro os segredos gastronómicos que só os alfacinhas de gema conhecem. Vai daí, escreveu o Guia das Tascas de Lisboa, com o patrocínio da marca de aguardentes Aliança Velha, que está nas bancas desde terça-feira. O livro compila histórias e recomendações de 25 estabelecimentos típicos da capital, entre os quais este A Castiça, com as paredes forradas a cachecóis do Benfica (alguns do Sporting, vá), fotografias de carros, notas estrangeiras, isqueiros, pratos e copos.

O dono, Vítor, Cantador porque às vezes lhe dá para arranhar um faduncho, era estofador de automóveis numa oficina próxima. Um dia a garagem ardeu e Vítor, que já tinha queda para a cozinha, foi parar a este restaurante, onde há mais de 20 anos serve uma clientela fiel de artistas, políticos e lumiarenses anónimos. Isto está escrito no livro. O que não está é que o arroz de feijão da casa, que acompanha umas enormes pataniscas de bacalhau, tem hortelã — peculiaridade inexistente ou pelo menos muito rara noutras casas.

A Parreirinha3

Estas não são as sardinhas que Vítor Cantador estava a assar, mas são igualmente boas, garante Tiago.

Enquanto debelamos as pataniscas e enfrentamos estoicamente o vinho branco, Tiago explica de onde veio isto de escrever um livro. “Começou com uma piada que foi levada a sério por uma data de pessoas”. Então foi assim: há uns três anos, o publicitário viu muita gente entusiasmada com os restaurantes do guia Michelin e decidiu ir brincar para o Facebook. “Tanta conversa sobre os guias Michelin… Vou mas é escrever um guia de tascas”, escreveu, sem saber bem o que estava a dizer. Dito e feito. Em menos de nada recebeu mensagens de amigos a dizer-lhe que avançasse com o projeto e não soube esquivar-se.

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Não que escrever sobre tascas fosse para ele um sacrifício. Pelo contrário, explica enquanto o arroz de feijão, que dá pelo menos para três pessoas, fumega num tacho:

“Eu tentava chegar pelo fim da hora de almoço, comia, e quando já só estavam um ou dois clientes tentava puxar-lhes pela língua.”

Com alguns tasqueiros era tarefa fácil, com outros nem tanto, mas no livro não há restaurante a que falte uma história. E são 25 as tascas, de Algés ao Parque das Nações, passando por Alcântara, Baixa, Benfica e Pedrouços, que têm lugar neste guia, todas com relatos e fotografias toscas a acompanhar. Toscas, sim, que não há cá lugar a bonitezas nestas tabernas, explica Tiago, que quis transmitir através das imagens a “autenticidade” que ainda se encontra nestes espaços.

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Tiago Cruz, o homem que pôs na ponta da pena o que tinha na ponta da língua.

Tasca, uma espécie ameaçada

Um jarro de branco, um arroz doce e um café depois, é tempo de partir da Castiça rumo a outras casas. Não sem antes Tininha, mulher do Vítor Cantador, se aproximar da mesa e anunciar que tem nove interessados no guia, que até já atravessou fronteiras. “Estiveram cá dois mocinhos estrangeiros ontem com o livro”, diz. Não surpreende, o guia foi editado em português e inglês e está à venda nas principais livrarias e supermercados do país.

Seguimos viagem para a outra ponta da cidade, a Mouraria, onde há duas tascas a merecer atenção: a do Zé e a do Zé. Vamos à Zé dos Cornos, ainda menos afamada do que a Zé da Mouraria e onde o patrão tem sempre à disposição uns queijos que vêm semanalmente na carreira de Castelo Branco. Mesas corridas, bancos de fórmica, uns cornos na parede, uma garrafa de tinto e dois queijos. Mais conversa para acompanhar o petisco que só a gula justifica. Então como se chegou a esta lista de restaurantes? “Fui indo uma a uma, almoçava um dia numa, jantava noutro dia em outra”, diz Tiago, que apanhou alguns barretes pelo caminho e acabou com 29 tabernas de que queria mesmo falar. Entre 2013 e agora, três delas acabaram por fechar. Uma má notícia para os apreciadores de comida caseira que acabou por facilitar a escolha da lista final.

A tasca, a verdadeira tasca lisboeta, é uma espécie de estabelecimento em vias de extinção. Seja porque obras no espaço modifiquem a essência do local, seja porque os donos morrem e os sucessores não têm arte, seja porque os senhorios tenham outros planos para os sítios, as tascas estão ameaçadas. Das que estão no guia, a Das Flores — na rua com o mesmo nome — tem ordem de despejo até outubro e a Central das Avenidas também corre o risco de fechar.

“As tascas são daquelas coisas que ainda nos dá autenticidade”, afirma Tiago já ao balcão d’A Provinciana, num beco próximo da Rua das Portas de Santo Antão. Aqui há três pipas de madeira atrás do balcão e é de lá que sai o vinho tinto de Aveiras que agora nos enche o copo. “A tasca é uma base a partir da qual se pode trabalhar a gastronomia portuguesa lá fora. Pode ser o nosso bar de tapas, o Irish Pub, a pizzaria”, explica.

Bom, com isto já passa das quatro da tarde e não fizemos outra coisa que não beber e comer. É melhor irmos fazer outra coisa da vida. Ó chefe! Era uma aguardente e a conta aqui para a mesa do fundo, que já basta de conversa. As tascas aí estão (por enquanto) para serem experimentadas. O livro, esse, custa 9,90€ e está à venda em qualquer livraria. Ou num boteco perto de si.

AF - CAPA+CONTRACAPA-Aliança-10 ABRIL