O Rafael não sabe mas, no ano passado, fez parar as gráficas onde estava a ser impresso o cartaz já fechado do 21.º Vodafone Paredes de Coura. O fundador do festival, João Carvalho, não se lembra do apelido deste jovem que lhe enviou uma mensagem no Facebook a sugerir uma banda britânica desconhecida. Mas gostou tanto do que ouviu que decidiu fazer um milagre de última hora e contratar os Public Service Broadcasting.”Por norma só contratamos coisas de que gostamos”, disse o patrão da Ritmos, em visita ao Observador, na quinta-feira.
É precisamente a paixão pela música que está na origem de tudo. E, até agora, tem corrido bem. Há 22 anos criou, junto com alguns amigos, um pequeno festival de rock alternativo para animar a sua Paredes de Coura. O evento que custou 160 contos transformou-se hoje num dos principais eventos do género, com um orçamento para este ano de mais de três milhões de euros. Já neste século, o fundador da Ritmos conseguiu trazer para o Porto a primeira internacionalização do prestigiado Primavera Sound de Barcelona.
Para a 22.ª edição do festival, que se realiza entre 19 e 22 de agosto, conseguiu que a única data europeia de Lykke Li fosse na pequena vila minhota. A ela vão juntar-se nomes como Tame Impala, The War On Drugs, TV On The Radio e Charles Bradley. Foi então pela música que começámos a conversa.
Está satisfeito com o cartaz?
Muito. Posso dizer que desde 2005 que não me dava tanto gozo fazer um cartaz. Que foi aquela edição com Queens of the Stone Age, Foo Fighters, Pixies, Arcade Fire, The National, Kaiser Chiefs, Vincent Gallo… Sabes que nós vibramos sempre que conseguimos um nome, como fazíamos há 22 anos. Somos os mesmos sócios, os melhores amigos e damos por nós a abraçar-nos como fazíamos há 22 anos. Vivemos intensamente a música e, sempre que contratamos alguma banda que gostamos – e por norma só contratamos coisas que gostamos -, é muito bom. As vendas estão a correr muito bem este ano, estamos com o triplo das vendas antecipadas em relação à mesma altura do ano passado.
Há algum risco de as entradas esgotarem antecipadamente? Nunca aconteceu.
[suspiro] Há…
Parece triste com essa possibilidade.
Pois, há muita gente que luta por esgotar os festivais, têm essa bandeira, e mesmo quando não esgotam dizem que esgotaram. Nós não. Eu começo a pensar: “Epá, e aquelas pessoas que sempre compraram no dia? Se esgotar não o vão poder fazer”. Vamos tentar guardar alguns bilhetes para os últimos dias, para quem está habituado a comprar na bilheteira, mas não sei.
“Os nossos sócios espanhóis do Primavera Sound, por exemplo, ficam espantados com a quantidade de convites que se dá cá, porque não é normal! Quer dizer, eu não vou ao Solar dos Presuntos pedir uma refeiçãozita, não é? Para as pessoas um bilhete é um papelinho. Não é.”
Quando falámos no ano passado, disse-nos não temer que os mais de 100 festivais que acontecem agora por ano em Portugal roubem público a Paredes de Coura. E artistas? É mais fácil ou mais difícil fazer contratações com tanta concorrência?
Isto não é uma ciência exata. Este ano, por exemplo, os agentes diziam que ia ser um ano difícil para os festivais, porque não havia muitas bandas na estrada. E nós acabámos por ter um dos melhores cartazes e o mais coerente de sempre, acho eu. O ano passado, teoricamente mais fácil, para nós foi mais difícil fechar o cartaz do que este ano. Depois também há determinada banda que gosta da coerência de determinado cartaz e que vem tocar, como é o caso da Likke Li, que na Europa só dá um concerto e é no Paredes de Coura. Os Ratatat quase decidiram fazer uma digressão europeia para virem a Paredes de Coura… Há muitos casos de bandas que nem tinham planeado estar em tour em determinada data, mas depois acabam por aceitar.
Os Ratatat estiveram no Primavera Sound de Barcelona. Tal como os The War On Drugs, que são um dos cabeças de cartaz agora. Já os Alt-J e James Blake, por exemplo, estiveram no Primavera Sound mas por cá atuaram no Optimus Alive. Como é que se faz esta negociação para trazer as bandas que estão em Barcelona para o NOS Primavera Sound do Porto, Paredes de Coura e NOS Alive?
Com a Everything is New não temos nada a ver. Este é um mercado aberto e as bandas não têm um valor exato. Tudo depende das propostas, das digressões… Agora relativamente ao Primavera, e como nós fazemos o Primavera Sound do Porto, é normal que, se algumas bandas não puderem transitar de Barcelona para o Porto, que ganhemos algum ascendente sobre outras promotoras para as levar a Coura.
Voltando a Coura, que concerto é que não vai perder?
Não vou perder os Tame Impala porque sou absolutamente apaixonado pelo novo disco deles. Acho que é genial, adoro. Acho que é não fazendo mais do mesmo que se cria uma grande banda.
Reparei que responde a muitos comentários do público na sua página de Facebook. Fazem-lhe muitos pedidos?
Sim, sim. Sabe que habituei mal as pessoas e hoje é complicado. Há dias em que tenho 50 mensagens privadas para responder, e coisas tão absurdas como se vai haver bengaleiros este ano. Ou então porque é que trouxeram esta banda e não trouxeram aquela, pessoas a sugerir bandas, a pedir um bilhete porque estão desempregadas… Respondo cada vez menos. Tento responder a todas, mas às vezes é complicado porque respondes àquelas 50 mensagens e dali gera-se um diálogo para o qual eu depois não tenho tempo. Eu gosto, mas aparecem as coisas mais surreais: “Posso ir conhecer determinado artista?”, “Será que ele pode ir almoçar à minha casa? Era um sonho” [risos].
Quanto tempo é que dedica a essa tarefa por dia?
[Suspiro]. Para aí umas duas horas. Mas não todos os dias, atenção. Mas faz parte, sabe? Cria-se uma relação com as pessoas. Vou contar um episódio que nunca contei a ninguém. Eu não me lembro de toda a gente a quem respondo. É impossível. Mas há aqueles nomes que uma pessoa decora, seja porque são engraçados no que escrevem, seja porque sugerem boas bandas. No ano passado levei uma banda ao festival chamada Public Service Broadcasting, por sugestão de um rapaz chamado Rafael. Eu já o conhecia das redes sociais e pensei: “se este gajo ouve é porque é bom, deixa-me lá ouvir”. E adorei, achei aquilo genial! E como era uma banda nova inglesa, ia sair barata de certeza.
Ele nem imagina que eu contratei a banda por causa dele. Já estava o cartaz fechado e tudo, tive de mandar parar a impressão dos materiais! Mais tarde no festival aparece-me uma rapariga a dizer que era amiga do Rafael e eu perguntei-lhe onde é que ele estava. E ela disse-me: “Ele não veio”. “Não veio? Mas então é fã do festival e vem sempre, porque é que não veio?”. A rapariga contou que ele estava desempregado e que por isso não conseguia vir. E eu disse-lhe para ela lhe ligar, que eu oferecia-lhe o bilhete. Claro, não faço isto a toda a gente, mas saber que uma pessoa que gosta do festival não vinha por falta de dinheiro faz-me confusão. E eu sou bom a apanhar os habilidosos, os que dizem que não têm mas que têm. A esses não dou nada.
E o Rafael foi ao festival?
A rapariga ligou-lhe, ele agradeceu imenso mas era de Aveiro e não tinha transporte. E eu ofereci-lhe boleia de um dos runners que vai buscar os artistas, dava um salto a Aveiro e trazia-o. Mas ele sentiu-me mal com isso, agradeceu imenso mas não aceitou. Fiquei com imensa pena. Mas isto para dizer que gostamos de ter essa relação de proximidade com as pessoas. O que depois leva a abusos, não é? Se me perguntares o que é que eu mais detesto no festival eu digo-te que é aquela semana que eu passo em Paredes de Coura na altura do festival e em que vou tomar o pequeno-almoço e tenho 10 pessoas, umas a pedir convites, outras a pedir não sei o quê. Quando não conheces as pessoas é fácil, mas quando conheces… “Ah, mas eu era tão amiguinho da tua avó”… As pessoas utilizam todos os argumentos para conseguirem o que querem, e é muito difícil dizer que não. É mesmo muito difícil. Eu prefiro dar às pessoas que eu sei que estão desempregadas, do que, e isto irrita-me perfeitamente, “Não é para mim, é para o médico que me salvou a vida”. Isto já me aconteceu! Ao que eu respondi: “Salvou a sua, não salvou a minha”. Se o médico gostasse de presunto, comprava-lhe um presunto. Se ele gosta de ir ao festival, compre-lhe um bilhete, não é? E eu sou conhecido na empresa por ser a pessoa que mais convites dá. É uma coisa muito portuguesa.
Pedir convites?
Sim. Os nossos sócios espanhóis do Primavera Sound, por exemplo, ficam espantados com a quantidade de convites que se dá cá, porque não é normal! Quer dizer, eu não vou ao Solar dos Presuntos pedir uma refeiçãozita, não é? Para as pessoas um bilhete é um papelinho. Não é. Ainda com uma agravante: por cada convite que dou, tenho de pagar o IVA, que são 15 euros que me saem do bolso. Porque o convite é considerado promoção. Este é o país da pedinchice, por isso as pessoas não têm noção. Banalizou-se o convite, até para passatempos. E não acho que enriqueça o festival.
Qual foi o orçamento para esta edição?
Três milhões e cem mil euros. Mais sensivelmente 5% do que no ano passado.
Vão fazer melhorias no recinto?
Imensas. Começa pela margem da praia fluvial. Alugámos a quinta do outro lado, uma parte para campismo e outra para dar continuidade à praia, e relvamos. Aquilo começava a ficar pequeno para as pessoas terem comodidade. Agora também podem estender ali a toalha. Vamos criar duas pontes para que as pessoas não tenham de ir à célebre ponte azul, vamos criar ali uma zona de alimentação muito subtil, tirar dali os carros, porque acho um absurdo tê-los ali. Redesenhamos o espaço e agora há uma série de locais onde era suposto acampar e as pessoas não o faziam por ter muito sol, e vamos meter lá os carros, mais escondidos. Isto tudo por causa de uma fotografia aérea que vimos e em que percebemos que realmente não fazia sentido, de um lado tão bonito tantas toalhas e, do outro, carros.
Vamos aumentar também a zona das casinhas de madeira, a feira de Paredes, que era uma coisa que não nos satisfazia plenamente, vamos melhorá-la, em termos de instalações e da diversidade da alimentação. O palco vai estar diferente, mais bonito, acho eu. Ninguém repara na vedação e podíamos ter deixado a que tínhamos, mas vamos ter uma vedação bonita, que não foi propriamente barata. Já fizemos novos caminhos em calçada portuguesa, para evitar a poeira. Ah, e vamos ser o primeiro festival acessível por avião, através de uma coisa que se chama Skyuber, que põe em contacto pilotos que saem de aeródromos de sítios como Vila Real ou Sintra com pessoas que ocupam os lugares livres que eles tiverem. Depois eles cobram pela viagem 20, 40 euros, depende. Nós depois tratamos do transporte direto para o recinto.
Sabes, quando as coisas correm bem, e é o caso deste ano, nós parecemos miúdos numa loja de gomas: “Agora vamos gastar aqui, agora vamos pôr isto bonito”. Porque quando tu dás carinho às pessoas, quando as tratas bem, elas devolvem-te isso a dobrar. Acho que é esse o espírito de Paredes de Coura, as pessoas sentirem que são bem tratadas para voltarem, que é o que a gente quer.
“Sabes, quando as coisas correm bem, e é o caso deste ano, nós parecemos miúdos numa loja de gomas: ‘Agora vamos gastar aqui, agora vamos pôr isto bonito’. Porque quando tu dás carinho às pessoas, quando as tratas bem, elas devolvem-te isso a dobrar”.
No ano passado contou-nos que houve artistas que trocaram o conforto do hotel e preferiram o turismo rural e até o campismo. Este ano, há aventureiros?
Muitos mais [risos]. Algumas bandas querem ficar no campismo. Que me lembre, as Hinds, acho que os Fuzz também querem ficar.
As águas da Praia Fluvial do Taboão vão estar boas para banhos?
Sim. Isso é um mito! [risos]. A Câmara Municipal [o novo presidente, Vítor Pereira, foi um dos fundadores do festival] tem tido muito mais cuidado com isso, que já não acontece há alguns anos. Nessa altura fizemos umas t-shirts muito engraçadas, com uma salmonela com ar de tubarão, que esgotaram no primeiro dia. Aquilo nunca ofereceu perigo para a saúde pública. O que se passou foi também um bocado lutas políticas da oposição. É possível fazer uma análise de várias formas, dependendo se se apanha a água no meio do rio ou junto à margem onde está choca e parada. Descobrimos depois de várias análises que houve habilidades de certas e determinadas pessoas, como diria o Octávio Machado.