(Artigo originalmente publicado em agosto de 2015, a propósito da inauguração da segunda rota, e atualizado em 27 de março de 2021)
A baía de Port Said estava triunfante no primeiro dia das festas. “Em nome da companhia de Suez, dou a primeira pancada de alvião neste terreno que abrirá às raças do Oriente a civilização do Ocidente”. O relato não é sobre a inauguração da segunda rota do Canal do Suez, que decorreria em agosto de 2015, no Egito. É, sim, a memória do que se passou em novembro de 1869, quando se abriu pela primeira vez uma das vias marítimas mais importantes do mundo, elo de ligação entre o Ocidente e o Oriente. Eça de Queiroz estava lá e relatou tudo ao Diário de Notícias, numa série de quatro reportagens.
Aos 23 anos de idade, e a quase outros tantos de vir a escrever Os Maias, o jovem Eça de Queiroz esteve na inauguração da ligação entre Porto Said, no Mar Mediterrâneo, e Suez, no mar Vermelho. Quando regressou a Lisboa foi desafiado pelo amigo e fundador do DN, Eduardo Coelho, a contar aos leitores tudo o que se passou. Se hoje, na primeira expansão do canal em 145 anos de existência, os jornais noticiam o que se está a passar no Egito quase ao minuto, à época foi preciso esperar dois meses, até 18 de janeiro de 1870, para ler nas páginas do jornal a primeira reportagem do escritor sobre o acontecimento.
O jovem Eça prometeu fazer “apenas a narração trivial, o relatório chato das festas de Port Said, Ismailia e Suez”. Longe de uma prosa aborrecida, logo no início do texto os leitores ficaram a saber que o escritor e o Conde de Resende, que o acompanhou em toda a viagem, não gostou da transição entre o sossego das pirâmides de Gizé, dos templos de Sakkarah e das ruínas de Mênfis e aquela “confusão irritante que foi o maior elemento de todas as festas do Suez”. Até porque a polícia egípcia não previu bem a logística do evento e esqueceu que “trezentos convidados, ainda que não tenham a corpulência tradicional dos paxás e dos vizires, não podem caber em vinte lugares de vagões, estreitos como bancos de réus. Por isso, em volta das carruagens havia uma multidão tão ávida como no saque de uma cidade.”
Feita a viagem de comboio para Alexandria, seguiu-se a viagem de barco até Port Said. A cidade por onde começaria a histórica travessia não impressionou Eça. “(…) nem edifícios, nem monumentos, nem construções sólidas e sérias: tudo é ligeiro, barato, provisório. A igreja católica é como uma grande barraca: vê-se o céu azul através do seu teto feito de grandes traves mal unidas. Tudo isto dá a Port Said um aspeto triste.”. Mas não a 17 de novembro de 1869. Nesse dia, tudo era pompa e circunstância.
“(…) Port Said, cheio de gente, coberto de bandeiras, todo ruidoso dos tiros dos canhões e dos urras da marinhagem, tendo no seu porto as esquadras da Europa, cheio de flâmulas, de arcos, de flores, de músicas, de cafés improvisados, de barracas de acampamento, de uniformes, tinha um belo e poderoso aspeto de vida. A baía de Port Said estava triunfante. Era o primeiro dia das festas.
Estavam ali as esquadras francesas do Levante, a esquadra italiana, os navios suecos, holandeses, alemães e russos, os yachts dos príncipes, os vapores egípcios, a frota do paxá, as fragatas espanholas, a ‘Aigle’, com a imperatriz, o ‘Mamoudeb’ com o quediva, e navios com todas as amostras de realeza, desde o imperador cristianíssimo Francisco José, até ao caide árabe Abd el-Kader.”
O homem que Eça descreveu a dar a primeira pancada de alvião no terreno, Mr. De Lesseps, também estava lá. Foi este diplomata francês que promoveu a construção dos canais de Suez (e também do Panamá). No dia seguinte à inauguração, os navios voltaram a proa para a entrada do Canal de Suez. A terminar a primeira reportagem, suspense: “Entretanto corriam por todos os navios estranhos boatos“, escreveu. Na segunda reportagem, publicada a 19 de janeiro de 1870, explicam-se os boatos.
“Dizia-se que o ‘Lafite’, pequeno vapor que na véspera tinha partido como explorador, encalhara; que os navios reais e imperais, os vapores egípcios com os convidados não podiam passar na estreiteza do canal, e que apesar de alijados da sua artilharia, e sem lastro, pediam mais água do que o canal tinha de profundidade; que o vice-rei e Mr. De Lesseps tinham partido para ver o ‘Lafite’; que se resolvera, em último caso, fazê-lo saltar; que as festas cessavam, e tudo regressava a Alexandria, como no tempo das derrotas de Actium.”
10 anos de trabalho para nada? Seria o Canal do Suez um fiasco de engenharia? “(…) era doloroso ver tudo aquilo findar repentina e vergonhosamente, ver-se que num canal feito para a navegação não cabiam navios, que aquilo era uma obra ridiculamente grandiosa, e que em lugar de tudo terminar em triunfos, tudo terminava em gargalhadas!“, relatou Eça de Queiroz, “um dos únicos quatro ou cinco portugueses” que ali estavam, segundo o DN da época. Depois da incerteza, tudo não passou de um susto. “Enfim, pelo começo da tarde, os navios começaram a mover-se, as inquietações findaram, o vice-rei voltava, o ‘Lafite’ estava desencalhado, a ‘Águia’ seguia, e a obra de Mr. De Lesseps começava a justificar-se”, contou o repórter de serviço.
Eça de Queiroz pode, enfim, partir a bordo do ‘Fayoum’, canal adentro. Ao repórter de serviço, o canal parecia estreito, baixo, e a cada momento os passageiros receavam ver a proa do navio “ir atufar-se nas areias das margens elevadas“. O canal, ao sair de Port Said, “atravessa o Mensaleh, antigo lago lamacento. Nós víamos de ambos os lados do canal reluzir ao sol aquela água morta, pesada, esverdeada”. A descrição pormenorizada prosseguiu pela bela e imponente Ismailia (“a capital do canal”), onde os passageiros pernoitaram. Depois, pela monótona paisagem até aos largos Amargos, com referências históricas a abrilhantarem o relato.
Na quarta e última reportagem, publicada no dia 21 de janeiro, o navio chegou ao Suez (“cidade escura, miserável, decrépita; é o começo de novas regiões; e já quase a Ásia e a Índia”), depois de passar com sucesso da calmaria do Mediterrâneo para a maré contrária do mar Vermelho. Dizia-se que tal obra nunca poderia nascer e uma das razões era porque o Mar Vermelho era tão perigoso que não poderia constituir um caminho marítimo. O repórter sacou da bagagem cultual e lembrou que “se o mar Vermelho foi de uma navegação fácil para as frotas de Salomão; se Venezianos e Portugueses puderam ali bater o Turco, o que se dirá hoje, com os meios científicos de navegação, e com vapor? Todas as objeções caem de per si.”
Depois dos seis dias de viagem desde a partida de Alexandria, a comitiva separou-se. Eça de Queiroz e o Conde de Resende seguiram para as costas da Arábia, para os lados do deserto do Sinai, e foram ver “o oásis de Moisés”. 145 anos e muita globalização depois, haverá mais do que quatro ou cinco portugueses presentes na inauguração da segunda rota do Canal do Suez – Portugal está oficialmente representado pelo secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação. A viagem pelo canal já não dura seis dias, nem os leitores aguardam dois meses pelo relato do sucedido. Mas ao de Eça vale sempre a pena voltar.