A história dos Mascarenhas cruza-se com o passado e com o presente da Índia. Na árvore genealógica da família não faltam governadores e vice-reis, distribuídos ao longo de vários séculos de influência portuguesa no país. Mas é em Cuncolim, Goa, que as raízes mais se confundem. Em 1666, por decreto assinado pelo rei D. Afonso VI, Francisco Mascarenhas, segundo filho do 1º Marquês de Fronteira, era nomeado o 1º Conde de Cuncolim. Hoje, mais de três séculos depois, esta família corre o risco de perder todos os bens e propriedades que possui naquela região.
Em causa, está uma lei que o Executivo goês aprovou unilateralmente, violando o tratado internacional assinado entre portugueses e indianos em 1974, quando Portugal aceitou a integração do território na Índia. Na prática, e de acordo com o novo diploma, todos os títulos ou propriedades concedidos “pelo antigo governo/regime português” são “abolidos”, “permanentemente extintos” e deixam de ter qualquer “efeito” legal. Esta decisão, assim, não afeta só a família Mascarenhas. Como ela, várias outras famílias podem perder tudo o que têm em Goa se a nova lei for aprovada pelo Estado indiano.
“Fomos simplesmente espoliados”, revolta-se Pietro Nigra, membro da família Mascarenhas. “Não estamos a falar de dinheiro, nem a discutir quinhões. Estamos a falar de história”, insiste. Da história da família em Goa, claro, mas também da história coletiva dos portugueses na Índia. É uma impressão digital que o Governo goês quer, a todo custo, apagar acusa.
O diferendo entre as famílias portuguesas com propriedades em Goa, que chegou a ser capital do Estado Português da Índia, e as autoridades indianas não é novo. Arrasta-se desde 1961, aquando da invasão do território – ou libertação de Goa, como então lhe chamou o governo de Nova Deli. Nesse ano, corria o mês de dezembro, as forças armadas indianas – em número e equipamento esmagadoramente superiores – derrotaram a resistência portuguesa, que acabou por se render, desrespeitando as ordens que chegavam de Lisboa. Além de Goa, cairiam ao mesmo tempo os enclaves de Damão e de Diu. Terminava assim a soberania portuguesa na região.
Uma teia com 50 anos
A tomada de Goa obrigou a que muitas famílias portuguesas abandonassem aquele Estado. O medo de represálias e o crescente nacionalismo indiano obrigava a todo o tipo de cautelas. A debandada contribuiu para que numerosas terras e propriedades, outrora detidas por portugueses, fossem ocupadas por habitantes locais. Três anos depois, a Lei das Propriedades dos Evacuados colocava essas propriedades sob a administração de um fiscal nomeado pelo governo indiano, salvaguardando, no entanto, a titularidade das mesmas. Começou aí a tecer-se a “teia em que nos envolveram há mais de 50 anos”, queixa-se Pietro Nigra.
O que agora chega com esta nova lei – a abolição de todas os títulos ou propriedades concedidas pelos portugueses – é o golpe decisivo nas aspirações que muitas famílias portuguesas alimentavam de recuperar essas terras. À luz do novo diploma, aprovado em março de 2014 pela Assembleia Legislativa goesa, a posse das propriedades que pertenciam aos portugueses passa agora para o Estado de Goa, “livres de quaisquer ónus, hipotecas, dívidas ou encargos de qualquer tipo”. Em troca, as autoridades goesas comprometem-se a pagar 20 vezes o valor da contribuição predial cobrada em 1961.
“Isto é a injustiça transformada em lei, é grotesco”, afirma Miguel Alvim, representante legal dos Mascarenhas. “É ilegal, injusta, confiscatória e fere de morte a letra do Tratado Internacional”. De facto esse Tratado, assinado pela pena de Mário Soares e do representante indiano, reconhecia pela primeira vez a independência de Goa e demais territórios, mas deixava bem claro que ambas as partes concordavam em resolver “por meio de negociações bilaterais todas as questões entre elas, incluindo as respeitantes à propriedade, bens ou reclamações dos cidadãos dos respetivos países, bem como as questões relativas à propriedade estadual e aos bens de cada um dos Estados nos territórios do outro Estado”.
A decisão do Estado goês passa assim por cima do acordo celebrado entre portugueses e indianos, mesmo tratando-se Goa de um Estado federado e, por isso, hierarquicamente inferior. Só que, argumentam as autoridades goesas, ninguém pode achar legítimo invocar direitos adquiridos na era colonial. Pelo que esses direitos passam a estar “permanentemente cancelados e extintos”.
“Quando não se encontram soluções políticas de outra natureza é simples: encontra-se um inimigo. É assim e bico calado”, acusa Miguel Alvim, referindo-se ao Executivo liderado pelo Partido do Povo Indiano (BJP), “nacionalista e radical”. E tudo está a ser feito com “o grande beneplácito da Índia”, que “tem mania de que é a única democracia da região”, mas depois, dentro de portas, “permite que isto aconteça”.
Para a família Mascarenhas estão em causa “1335 hectares”, um terreno onde foi construído um “conjunto de prédios de grande interesse imobiliário” e numa zona onde, desde de 1961, foram sendo desenvolvidos “polos tecnológicos” importantes para a região, lembra Pietro Nigra.
Desconfianças e medos
Um ano depois de ter sido votada e aprovada a lei, os Mascarenhas continuam longe de ver o problema resolvido. A falta de uma posição concertada entre as várias famílias nesta situação é um dos fatores – não o único – que ajuda a explicar o arrastar do problema. “A lei foi pensada quase à medida de famílias como os Mascarenhas, os Noronha e os Távora”, começa por dizer o advogado. Famílias que, não tendo uma relação permanente a Goa, não vivendo lá sequer, nunca construíram laços com outras famílias indianas. E isso é visto com desconfiança pelas outras famílias. “Olham-nos como se não fôssemos indianos. Existe a ideia de que podemos contaminar” as boas relações com o Estado de Goa. Por isso, “nunca houve um verdadeiro interesse” em aliar esforços, revela Miguel Alvim.
Depois de esgotadas todas as tentativas de diálogo com as autoridades goesas, Miguel Alvim tentou interceder junto do embaixador indiano em Portugal. Deu com uma porta fechada que nunca se abriu. “O embaixador da Índia em Portugal nem sequer me respondeu”, queixa-se.
No início, quando a questão foi levantada, “houve muito apoio e cooperação a nível consular em Goa”. Ao mesmo tempo, do Ministério dos Negócios Estrangeiros português “houve também uma manifestação de apoio”. Mas tudo “muito informal”, sem “força”, afirma Alvim. “Não vejo nenhuma força do Estado português. Deveria fazer mais”.
Ao Observador, o Ministério dos Negócios Estrangeiros português garantiu que o Governo “tem vindo a acompanhar a questão da aprovação da legislação” e deixou claro que já terá “transmitido às autoridades indianas a sua disponibilidade para negociar bilateralmente”, à luz do Tratado, “todas as questões colocadas pela entrada em vigor desta lei, aprovada pela Assembleia Legislativa do Estado de Goa”.
O gabinete de Rui Machete acrescenta ainda que o “Governo português não deixará de solicitar, quando necessário, diligências adicionais com o objetivo de alcançar uma solução que acautele os legítimos interesses dos cidadãos nacionais eventualmente afetados”. O Observador tentou contactar o Consulado da Índia em Portugal, mas não obteve qualquer resposta.
A “lei de abolição de títulos de propriedade, títulos e concessões de terras” terá ainda de ser ratificada pelo Estado indiano, numa altura em que estão já vários processos judiciais a decorrer naquele país. Pietro Nigra mantém assim a esperança de que seja possível encontrar uma “solução justa e dialogada” para ambas as partes. E insiste: “Estamos dispostos a ajudar o Estado indiano, seja através da criação de uma fundação”, que ajude a “preservar a pegada que os portugueses deixaram na Índia”, seja “também na área do turismo”, aproveitando o passado comum entre os dois países para levar mais portugueses a visitarem aquela região. Agora, não podemos é ser simplesmente espoliados”.