Antes do mIRC já havia IRC

O IRC, que mais não é que uma sigla para Internet Relay Chat, data de 1988 — ou seja, antes da própria World Wide Web — e deve a sua existência a um finlandês de nome Jarkko Oikarinen, dono de um site pessoal com um incrível aspeto vintage e à época estudante da Universidade de Oulu. Na altura, boa parte da comunicação online no seu departamento era feita através de BBS (bulletin board system) e Oikarinen criou o IRC para que ela passasse a acontecer em tempo real. Assim foi.

jarkko

O criador do IRC trabalha na Google atualmente. E tem este site.

A partir da Universidade de Oulu, a rede de IRC expandiu-se para outras instituições de ensino finlandesas e, mais tarde, para os Estados Unidos. Os servidores multiplicaram-se e o IRC não demorou a tornar-se uma rede mundial ainda que, numa primeira fase, sem um grande número de utilizadores permanentes.

Durante a primeira guerra do Golfo esse número explodiu, principalmente entre jornalistas, já que as informações sobre o que se passava no terreno iam sendo colocadas em tempo real em canais criados para o efeito. O famoso mIRC, cliente (programa) que permitia aceder ao IRC surgiria apenas em 1995, numa altura em que a rede tinha cerca de 5000 utilizadores em todo o mundo.

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gulfwarmirclog

Exemplo de uma janela de chat de IRC durante a Guerra do Golfo.

O mIRC simplificou o (acesso ao) IRC

Uma das razões que levaram o britânico (de origem sírio-palestina) Khaled Mardam-Bey a criar o mIRC foi, segundo o próprio, o pensamento de que “se tudo fosse um pouco mais intuitivo, mais pessoas poderiam usar a rede”.

A primeira versão pública do software foi lançada em fevereiro de 1995 e o sucesso foi de tal ordem que Mardam-Bey teve de interromper o mestrado em Ciência Cognitiva para conseguir dar resposta às solicitações dos utilizadores.

Desde aí, o criador contabiliza mais de 150 milhões de downloads no respetivo site e em 2003 o programa foi considerado um dos 10 mais populares da internet. A que se deve o sucesso? A vários fatores: não só o mIRC simplificou o acesso ao IRC como lhe trouxe funcionalidades muito apreciadas, da customização fácil à troca de ficheiros entre utilizadores.

O m de mIRC não significava nada

No site oficial, o criador do mIRC explica que a letra “provavelmente significa moo, ou talvez MU”, dando a entender que é assim por MU ser o termo chinês para “nada”. Da mesma forma, explica que o nome se deve pronunciar como uma sigla, embora reconheça que por vezes, para tornar o processo mais rápido, o transforma numa palavra. Foi dessa forma [‘mirque’] que ficou conhecido em Portugal.

Por cá (quase) todos se ligavam à PTNet

O IRC chegou a Portugal no ano de lançamento do mIRC, 1995, se bem que de forma experimental, com ligações entre os servidores de várias universidades. O acesso do público em geral à rede nacional de IRC, a PTNet — e nessa altura as ligações à internet eram mais raras que notas de 10 contos — veio no ano seguinte, embora o primeiro boom de utilizadores tenha surgido apenas dois anos depois, quando as (poucas) operadoras da altura começaram a apostar na comercialização do acesso doméstico à internet. O ano de maior fulgor da PTNet foi, segundo as estatísticas do site irc.netsplit.de, 2003, com mais de 33 mil utilizadores registados. A partir dessa altura, com o advento de outros meios de comunicação, como MSN, Skype, e redes sociais como o hi5, primeiro, e o Facebook, depois, o IRC foi perdendo fulgor. E utilizadores.

ptnet stats

Número de utilizadores ligados à PTNet por ano. Estatística retirada de irc.netsplit.de

No mIRC, os canais não eram de televisão

Pois não. No IRC — e, consequentemente, no mIRC — a comunicação organizava-se por canais. Cada canal, identificado por um cardinal antes do nome, funcionava como uma sala de chat. Do #sexo à #filosofia, do #slb ao #fcp, do #punkrock ao #pimba, qualquer pessoa podia criar e registar o seu próprio canal. Havia-os para todos os gostos: canais de bandas, clubes, bares, discotecas, escolas, turmas, bairros, grupos de amigos, jogos de computador…era só escolher.

Os canais podiam ser privados, públicos ou ter um limite de utilizadores. Era comum ver os canais mais concorridos, como o #portugal, limitados a 1000 utilizadores em simultâneo. E a comunicação não se restringia, claro, às conversas em grupo. Dois utilizadores podiam conversar entre si numa janela privada, normalmente identificada como pvt. Lembra-se?

mirc canal

Um screenshot do mIRC em funcionamento.

Ops, whois, ping, kick, ban, nuke, oi, dd tc?…era a linguagem desse tempo

O fundador de um canal podia nomear operadores para controlar esse mesmo canal. Os ‘ops’, assim eram conhecidos, identificavam-se por um @ antes do respetivo nickname (a alcunha que um utilizador escolhia para se identificar) e definiam desde o tópico do canal a quem podia lá estar. Era prática comum kickar os utilizadores mal-comportados (permitindo-lhes voltar ao canal) ou mesmo bani-los permanentemente. Havia, também, quem conseguisse provocar nukes, ou seja, interromper a ligação ao servidor de determinado utilizador.

No mIRC as conversas com desconhecidos começavam com ‘oi’, e prosseguiam quase sempre com um ‘dd tc?’ (de onde teclas?). Também ficou famosa a (auto-explicativa) expressão ‘és m ou f?’. Havia outros comandos muito utilizados que se tornaram parte do léxico da época: /whois mostrava a informação de determinado utilizador bem como os canais em que estava; /me permita deixar uma mensagem personalizada na terceira pessoa; /away servia para informar os restantes utilizadores que se estava ausente do computador. Não esquecer, também, os artistas de serviço que se entretinham a mostrar desenhos com os caracteres disponíveis, a chamada ASCII art.

asciiart

Na altura, ninguém precisava de emojis.

Com o tempo foram também aparecendo scripts — versões modificadas do mIRC original –, que não só tornavam todos os comandos anteriores automáticos como mudavam as cores e os gráficos, traziam corretor ortográfico, jogos ou leitor de mp3 incluído. Os mais conhecidos eram o Dekadence e o Scoop Script.

Quando tudo ia abaixo era uma tragédia

Na segunda metade dos anos 90, a grande maioria dos utilizadores domésticos utilizava modems de 28.8, 33.6 ou 56kbit/s (no final da década) para se ligar à internet. Essa ligação ocupava a linha telefónica, impedindo a normal utilização dos telefones. Era, por isso, em muitos casos, necessário pedir autorização aos pais ou, pior, combinar previamente que a ligação não ultrapassaria determinado período tempo. Ligar-se às escondidas era uma opção, mas tinha dois constrangimentos: 1) todas as ligações vinham discriminadas na fatura telefónica; 2) os modems faziam muito barulho. Recordemos.

Assim, com tantas restrições, o pior que podia acontecer a quem tinha aquela horinha bem negociada para estar no mIRC era o temível netsplit. Quando os utilizadores começavam a sair em catadupa, percebia-se logo: os servidores estavam a cair da rede e os seus utilizadores caíam com eles. Era trágico.

NetSplit

Exemplo de um (temível) netsplit.

O mIRC ainda sobrevive

É verdade. O supracitado Khaled Mardam-Bey continua a atualizar o programa — a última versão data de 3 de agosto deste ano. E faz algum sentido que assim seja: o IRC, enquanto meio de comunicação, ainda tem um número considerável de utilizadores, em várias redes. Há, por exemplo, muitos programadores de Linux (e não só) que usam a rede Freenode para trocar ideias. A rede QuakeNet, por sua vez, é muito utilizada por quem joga online, e a Rizon pelos fãs de anime, entre outros. Quanto à PTNet, continua ativa, sim, mas com menos de 700 utilizadores em permanência, e com grande enfoque, a avaliar pelos canais mais visitados, nos encontros ocasionais.