Há três letras que se forem postas juntas toda a gente sabe o que é, ou pelo menos tem uma ideia: ADN. Mesmo quem desde pequenino andou a dormir nas aulas de Ciências saberá que esta sigla tem a ver com a genética, com algo com o qual nascemos e que coordena tudo o que fazemos. Ninguém nasce ensinado e muito menos com os genes a magicarem, à nascença, que naquele corpo está alguém que, quando for crescido, terá jeito para jogar à bola e a vontade inata de jogar para ganhar. Mas quem ouvisse Fernando Santos e confiasse no que ele dizia ficava exatamente com esta ideia na cabeça. Porque o homem que treina quem joga na seleção disse que “o ADN” dos portugueses “é jogar para ganhar” e ai de quem dissesse o contrário.
Nada se ouviu a sair da boca de João Moutinho. Não se sabe se ouviu na altura ou leu depois as palavras com que o selecionador respondeu a quem lhe perguntou por um empate frente à Dinamarca. Não era por mal: um ponto chegava para Portugal garantir que, no próximo verão, estaria a jogar o Campeonato da Europa em França. É o país onde João passa os dias a tocar na bola e Moutinho é o jogador que qualquer treinador gosta de ter — pode não jogar muito bem, mas é raro jogar mal; quase nunca marca golos, embora dê muitos a marcar; talvez não pareça um líder, mas é dos que obedece e cumpre à risca o que lhe mandam fazer. Sempre foi assim.
Por isso é que passa uma parte do jogo descolado dos médios e próximo dos avançados. Passa grande parte dos minutos perto de Ronaldo, Nani e Bernardo Silva, lá à frente. Era ele o jogador a mais que era preciso quando uma bola chegava rasteira ao ataque e havia espaço para trocar tabelas e passes rasteiros. Danilo Pereira e Tiago ficavam lá atrás, a pedir a bola aos defesas, a encarregarem-se que ela, depois, chegava a quem melhor sabia rematá-la à baliza. O problema é que a bola chegava à área mais vezes a viajar pelo ar do que a rodar pela relva. João Moutinho corria muito, desmarcava-se, era o pequenote que espreitava nos espaços entre os matulões dinamarqueses. Mas a equipa não lhe fazia caso, insistia em cruzar e cruzar por alto, para a área, quando nunca lá havia mais que um português e em campo não estava um avançado.
Até que João se fartou de passar bolas para o lado e de as ver seguir o atalho fácil do cruzamento. Aos 33’ recebeu um passe de Ronaldo e pensou, “não senhor”. Estava à entrada da área, tinha tempo e espaço para se preparar como deve ser e, pumba, disparou uma bomba. O remate passou centímetros acima da barra. Cinco minutos depois rendeu-se à arte de cruzar e, perto da fronteira da área, mostrou como teleguiar uma bola, quando a pôs na cabeça de Nani, que a rematou em cheio contra a barra da baliza dinamarquesa. O melhor que a seleção fazia até ao intervalo saía dos pés do pequenote com quase três anos de emigrante em França (chegou ao AS Monaco em 2013). O problema é que o melhor era muito pouco para evitar “o pior” que Fernando Santos dissera que podia acontecer: “Procurar o pontinho”.
A seleção arriscava muito pouco, Ronaldo quase só tocava na bola quando tinha a baliza nas costas e os 11 cruzamentos até ao intervalo de nada serviam. O susto que Nicklas Bendtner pregou com um remate ao poste que não lhe deixou marcar o sétimo golo a Portugal serviria para alertar a equipa que, para o pontinho, não dava mesmo. Uns quantos berros de Fernando Santos gritados desde o banco ajudaram e João Moutinho percebeu a mensagem. Com calma e com a bola colada à relva, se possível, era assim que tinha de ser no ataque. A paciência lá começou a fazer companhia às jogadas e a ajudar a que aparecessem as tabelas curtas nas alturas em que os portugueses se tinham que evadir da pressão dinamarquesa. Um, dois, três toques, com Moutinho sempre perto de Ronaldo ou Bernardo Silva, para fazer a bola chegar às linhas para, lá está, ser cruzado por Cédric ou Coentrão para Nani. O meios mudavam, mas o fim continuava o mesmo.
Até João inventou um, aos 58′, embora mais em balão, como um passe longo, quando atirou a bola da direita à esquerda da área, para Cristiano Ronaldo a matar na relva, tirar Jacobsen da frente e dar um remate para Kasper Schmeichel brilhar na baliza — duas vezes, porque filho de guarda-redes sabe defender e ainda parou a recarga rematada por Bernardo Silva, um metro à sua frente. Moutinho colava as mãos à cabeça. Muitos e vários cruzamentos se seguiram até o médio, na ressaca de um canto, rematar de primeira e para a pedreira que é vizinha do Estádio AXA, em Braga. Terá ficado a remoer a inimiga chamada pressa porque, aos 66′, quando outro ressalto lhe chegou à entrada da área, teve tanta calma quanto classe: dominou a bola na relva, fingiu que ia rematar e sentou dois defesas dinamarqueses para, depois, bater a bola em jeito para a baliza. À pressa seguiu-se a calma e o 1-0 vinha de quem menos golo tinha no ADN — era apenas o terceiro que Moutinho marcava em 80 jogos pela seleção nacional.
Faltava menos de meia hora para jogar e era a vez de Portugal fazer uso do lado cleptomaníaco de Tiago e Danilo e do esforço de Nani e Bernardo Silva. Os primeiros tiveram de roubar muitas bolas a meio campo e os segundos de correrem mais metros para trás do que para a frente para ajudarem na defesa. A derrota não era nada amiga dos dinamarqueses, que jogavam a última partida na qualificação e assim ficavam a jeito de serem ultrapassados pela Albânia, no domingo. Por isso apertaram e conseguiram que William Kvist, aos 76′, e Michael Khron-Dehli, já nos 91′, rematassem a bola para darem a Rui Patrício duas hipóteses de salvar a vitória para a seleção nacional. Os últimos minutos Moutinho passou-os perto do banco, em pé, nervos em bica, a olhar para o que se passava no relvado de onde saíra para ouvir os adeptos a baterem-lhe palmas. Foram bem merecidas.
A seleção aprendeu a dizer olá em francês pelo dicionário do homem que há mais anos anda por lá. Quando o árbitro apitou, João foi rápido a pegar numa bandeira, erguê-la nos braços e enrolá-la à volta do corpo. Deu uma volta ao relvado, retribuiu as palmas às bancadas e fartou-se de dar trabalho aos músculos que a cara ativa para sorrir. Moutinho estava feliz da vida porque do seu pé direito saíram várias coisas — o golo que deu a sexta vitória seguida e a primeira vez que a seleção o conseguia em fases de qualificação e que o tornou apenas no terceiro homem a marcar nesta fase de apuramento (só Cristiano Ronaldo, com cinco golos, e Miguel Veloso, com um, também marcaram). Foi ele quem mais razão deu a Fernando Santos que diz o que todo o jogador da seleção tem no ADN: jogar para ganhar. Se calhar é isto mesmo que está no ácido desoxirribonucléico de quem é português e joga à bola.