Marta Temido foi ministra durante cerca de quatro anos, mas é um nome que vai ficar muito tempo na memória dos profissionais de saúde, em especial dos enfermeiros. Por tudo o que fez, mas, principalmente, pelo que não fez. Mesmo tendo exercido o cargo durante uma pandemia inédita.

Em rigor, ao contrário do que se tem dito, nem sequer podemos considerar que a ministra da Saúde demissionária tenha sido a principal face da gestão da pandemia, mesmo quando existia um consenso político e social em torno da crise de saúde pública. Na verdade, as figuras que se destacaram no combate à pandemia, para o bem e para o mal, foram António Costa e Gouveia e Melo.

De resto, Marta Temido, embora não seja a única responsável, revelou-se incapaz de dialogar com os profissionais, que são o principal ativo de qualquer instituição, não fez uma única reforma relevante e deixou-nos um Serviço Nacional de Saúde (SNS) à beira do colapso.

O SNS custa cerca de 100 euros por mês a cada cidadão.

E, paradoxalmente, embora o vencimento médio nacional ronde os 800 euros mensais, quatro milhões de portugueses, ou seja, cerca de 40% da população, possuem um seguro de saúde.

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Aliás, Portugal é dos países da OCDE onde as pessoas mais gastam com a saúde privada, estando abaixo da média no investimento público em Saúde, bem como nos cuidados continuados e na prevenção.

No ano passado, os portugueses gastaram 6,8 mil milhões de euros em despesas diretas de Saúde. Foi o valor mais alto de sempre.

Somos, de resto, um país onde um médico prestador de serviços no SNS se fizer apenas dois turnos de 24 horas por mês pode ganhar mais do triplo do vencimento de um enfermeiro.

São números impressionantes. E dão muito que pensar…

O nosso SNS, universal e gratuito, foi concebido para ser um dos pilares do estado de direito, da coesão territorial e uma instituição central numa sociedade justa e solidária. Mas, na prática, não é.

Seria fastidioso e desnecessário enumerar todos os problemas crónicos de que padece o SNS. Qualquer utente ou funcionário conhece-os bem. E também sabe que, apesar de todas as dificuldades, vai funcionando graças ao espírito de missão dos seus profissionais. Mas tudo tem um limite.

No SNS, podemos identificar problemas orçamentais, de recursos humanos, de gestão, de planeamento e estratégia, políticos e até históricos.

Ultimamente, tem surgido o argumento definitivo e conformista que tudo se deve ao envelhecimento da população – problema que, infelizmente, está muito para além de uma legislatura de quatro anos e, por isso, continua adiado – que é transversal à Europa. De acordo com os dados atuais, Portugal em 2050, terá um terço da população com idade igual ou superior a 65 anos. Mas, neste momento, já somos o campeão europeu das doenças crónicas entre os cidadãos seniores e, pelos vistos, agora também temos o número de óbitos mais elevado.

Por outro lado, ainda, há quem, simplesmente, diga que o sistema está centrado no médico e na doença e não, como deveria estar, nas necessidades das pessoas, na prevenção da doença e na promoção da saúde.

Marta Temido tinha afirmado há dias que o problema atual das urgências de obstetrícia era fruto de decisões tomadas nos anos 80 e, provavelmente, até tem razão. Mas não teve a coragem política para, por exemplo, atribuir mais competências aos enfermeiros especialistas em saúde materna e obstétrica, à semelhança do que se passa em muitos outros países e apesar das inúmeras propostas da Ordem dos Enfermeiros. Talvez

se pudessem ter evitado os constrangimentos nas urgências desta especialidade.

Aliás, de um modo geral, quanto às competências dos enfermeiros, é lapidar o que Maria de Lurdes Rodrigues, antiga ministra do PS e reitora do ISCTE, escreveu: Esta revisitação da divisão social do trabalho é fundamental sobretudo no que respeita às responsabilidades dos profissionais de enfermagem, os quais, dados os padrões da sua formação, poderiam assumir responsabilidades semelhantes às que têm noutros países desenvolvidos. Este tem sido, em Portugal, um tema tabu. Porém, quando se estudam as razões da emigração de milhares de enfermeiros, encontram-se sempre as referências às possibilidades (concretizadas) de realização profissional e às oportunidades de carreira inexistentes em Portugal. Naturalmente, mais competências e responsabilidades implicam uma maior valorização do trabalho prestado e, sobretudo, uma gestão mais racional do sistema, em benefício das pessoas.

Os problemas do SNS sempre foram conhecidos pelos ministros da Saúde e pela generalidade dos governantes e políticos. E os diagnósticos estão feitos há anos e são amplamente consensuais. Todos sabem as reformas que são urgentes e necessárias.

E a pasta da Saúde não pode ser gerida apenas reagindo às notícias, à espuma dos dias e aos factos consumados. Estamos permanentemente a correr atrás do prejuízo e, diga-se, em abono da verdade, que há longos anos que os governos não arriscam verdadeiras reformas estruturais.

E, quando o tentam fazer, como foi o caso da Lei de Bases da Saúde e do novo Estatuto do SNS, fazem-no sozinhos, elaboram documentos pouco claros, baseados em princípios vagos e sem aplicação prática ou ficam reféns de questões conjunturais ou ideológicas.

No meio deste turbilhão, está a enfermagem. A maior profissão da saúde que tem sido ignorada, injustiçada e silenciada.

De uma vez por todas, a enfermagem tem de deixar de ser o parente pobre do SNS. Muita coisa mudou nos últimos anos, é certo. Mas tem sido um caminho longo e tortuoso e ainda muito distante da forma como os enfermeiros são tratados e valorizados noutros países.

A secretária de estado da Saúde, agora também demissionária, disse, em maio passado, no Congresso dos Enfermeiros, que o problema do congelamento de pontos para progressão na carreira dos enfermeiros no SNS, uma das maiores injustiças laborais deste século, estaria resolvido ainda este ano. As negociações com os sindicatos pareciam estar, finalmente, a produzir alguns resultados. Será inaceitável que fiquem adiadas.

É ilusório querer fazer qualquer reforma eficaz ou tomar medidas sérias sem olhar para a maior profissão da Saúde, como fez o governo com o novo Estatuto do SNS.

Com efeito, o governo não deveria produzir um diploma com estas implicações sozinho ou tendo apenas como referência uma única profissão da saúde, em face das manchetes dos jornais.

A Ordem dos Enfermeiros tinha feito várias propostas de alteração ao documento, como, por exemplo, a aplicação do regime de dedicação plena a todos os profissionais de saúde e não só a médicos; a aplicação do critério mínimo das dotações seguras e das normas técnicas, definidas pelas ordens profissionais, à política de recursos humanos; a inclusão de todos os profissionais de saúde nos estímulos à fixação em determinadas zonas geográficas; o direito das pessoas ao enfermeiro de família e várias propostas que materializavam o reconhecimento e reforço do papel dos enfermeiros e das direções de enfermagem no SNS. Todos estes contributos foram olimpicamente ignorados.

O tempo de espera e de conformismo esgotou-se para os enfermeiros.

Nos últimos anos, assistimos a várias greves, a protestos dos enfermeiros especialistas e à denominada greve cirúrgica. A pandemia trouxe à sociedade a consciência do papel e importância dos enfermeiros no sistema de Saúde. Mas o governo, em vez de tentar compreender as manifestações autênticas de uma classe profissional cansada e desmotivada, resolveu atacar a sua ordem profissional e os sindicatos.

Em alguns países da Europa do norte, os enfermeiros já fizeram protestos que consistiram em abandonar os serviços ou despedirem-se em massa. Em Portugal, cada vez mais enfermeiros sentem que não são ouvidos e defendem estes atos mais radicais. Sem dramatismos, a realidade é esta.

Espero, sinceramente, que quem se vier a sentar na cadeira de ministro da Saúde tenha uma postura de abertura a um diálogo construtivo e leal com todos os interlocutores da Saúde e, sobretudo, que venha para tomar decisões e agir. O colapso do SNS está iminente.