De repente, os olhos do taxista quase lhe saltam das órbitas.

“Para Saint-Denis? Oh, mon Dieu… Tens colete à prova de bala?”

Estamos no centro de Paris, no 11º arrondissement, mesmo à boca da Praça da República. O cenário é igual ao de todos os dias que se seguiram aos atentados de 13 de novembro: dezenas de jornalistas, para lá de uma centena de pessoas, sobretudo jovens, que se reúnem em torno da estátua central para prestar homenagem aos 129 mortos. Existe, porém, uma diferença entre esta manhã de quarta-feira e as últimas: é que, hoje, Paris voltou a acordar ao som de tiros e explosões.

Primeiro, surge o medo de se tratar de mais um atentado. Depois, as notícias a conta-gotas. Foi a polícia que, de madrugada, entrou de rompante numa casa na periferia de Paris, julgando conseguir encontrar lá, nada mais nada menos do que Abdel-Hamid Abu Oud, o homem a quem tem sido atribuído o título de “cérebro dos atentados de Paris”. Contam-se dois mortos — já se fala de um terceiro — (entre eles uma mulher que se fez explodir com um colete-bomba), sete detidos e o pânico de volta. Ainda não se conhece a identidade das pessoas que estavam na casa.

Dentro do táxi, ouve-se de forma clara a voz do ministro do Interior francês, Bernard Cazeneuve, que faz agora uma declaração pública:

Quero homenagear todos aqueles que fizeram parte desta operação, um total de 110 pessoas, que agiram de forma corajosa e sob fogo em condições pelas quais nunca tinham passado antes. Gostava também de agradecer a calma que os residentes de Saint-Denis tiveram.”

Mais do que ouvir as palavras de Cazeneuve atentamente, o taxista parece mais preocupado com o destino onde lhe pedimos que nos leve. “Tens colete à prova de bala?”, torna a perguntar. “É que eu não!” E mais adianta: “Eu acho que os jornalistas deviam andar armados. Então se vão para estes sítios e lhes acontece alguma coisa? Eu se fosse jornalista tinha uma arma de certeza!”.

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O percurso passa a ser negociado. “Não vou até lá, não, não, nem pensar. Não sou maluco. Deixo-te lá ao pé, no máximo.” Quando a vida em Paris já parecia voltar ao normal, a cidade luz volta a ser tomada pelas sombras. Uma viagem de táxi já não é só uma viagem de táxi.

“Daqui não passo”, diz o condutor, chegado ao Stade France, mesmo no começo de Saint-Denis. Esta zona também é conhecida como Portas de Paris. Para um lado, a capital vibrante, dos cafés e esplanadas a abarrotar, dos bouquinistes, dos museus, das avenidas largas e majestosas. Para o outro, os subúrbios.

Foi aqui, mesmo ao pé deste estádio construído para o mundial de futebol de 1998 — aquele mesmo que foi vencido por uma seleção francesa em que a maioria dos jogadores eram filhos de imigrantes —, que tudo começou na noite de sexta-feira, 13 de novembro, quando três bombistas-suicidas começaram a lançar o pânico em Paris.

Saint-Denis, um bairro (que já foi) de portugueses

“Saint-Denis é o bairro mais podre de Paris!”

É assim, de chofre, que José Peixoto, um homem de 61 anos que já leva outros 49 a viver neste bairro, começa por falar do que se passa a 200 metros do seu café, “Vila Nova”.

Foi acordado pelas sirenes por volta das 6h00, quando o bairro foi tomado por sirenes de ambulâncias e carros de polícia. A juntar a tudo isso — que não é pouco, pois estavam mais de 50 carros das autoridades no local —, havia um helicóptero “a fazer uma barulheira do caraças”.

“Isto é um filme, meus amigos. Isto é um filme”, vai dizendo várias vezes, sempre que espreita para o fundo da rua. Lá, junto à igreja de Saint-Denys de L’Estrée, estão três barreiras, cada uma com a sua multidão: a dos polícias, a dos jornalistas e a dos civis, a maioria árabes ou africanos.

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O apartamento que é hoje o centro de toda a tensão não fica muito longe da casa de outro português que também vive em Saint-Denis. Eduardo Pinto, um bate-chapas reformado aos 62 anos, vive a 150 metros da casa que foi alvo de uma intervenção policial hoje de madrugada. Num momento algo caricato, ao chegar ao local, o dono da casa em questão falou a um canal de televisão garantindo que não sabia que tinha terroristas em casa e que apenas emprestou a casa “por favor”.

Apercebi-me de que é em minha casa e que há pessoas barricadas lá dentro. Não sabia que eram terroristas (…). Uma pessoa pediu-me para lhe fazer um favor e eu fi-lo. Essa pessoa pediu-me para alojar duas pessoas durante três dias e eu fi-lo. É normal. Não sabia de onde vinham. Se o soubesse acha que o teria feito?”

https://www.youtube.com/watch?v=ANFE0Xqhi1U

O café Vila Nova, assim chamado por José ter nascido em Vila Nova de Foz Côa (“a Vila Nova mais importante do país, ao pé daquilo Gaia não é nada”), é um café português e, por isso, com poucos clientes. José comprou o espaço em 2007, que era à altura um restaurante chinês. Ainda sobram os vestígios desses dias: um enorme pano bordado com desenhos asiáticos e carateres em mandarim, espelhos com decorações de dragões, teto de madeira. “Eu quando comprei isto nunca pensei em mudar isto. Não, não mudei nada.” Existem apenas dois sinais de aquele é, afinal de contas, um café português: a bandeira à porta e um azulejo pendurado no balcão a dizer “Se bebes para esquecer, paga antes de beber”. E daí não passará: o café está à venda. “A vendre”, lê-se à porta. Por falta de paciência e clientes.

“Os portugueses já se foram embora daqui há muito tempo, fugiram todos”, conta Eduardo Pinto. “Agora é quase só árabes”, diz, com o tom de quem acha isso mau. “É que aqui há muito crime, muitos roubos, muita droga”, explica. “Eu já cá estou há tantos anos, já estou habituado. Mas há quem venha para cá uma semana e foge logo.”

A convivência entre portugueses e árabes é praticamente nula neste bairro periférico de Paris. “Nós e eles lá”, resume Eduardo. “Gosto de beber o meu copito, vou aos cafés, mas com os árabes não há grandes misturas.” Cada um tem os seus cafés, cada um tem os seus restaurantes, mesmo que acabem por viver todos no mesmo prédio. Tanto Eduardo como José falam dos seus vizinhos com desdém. Acham-nos todos uns “gatunos” e que as leis “estão feitas a favor deles”. Eles, isto é, os “gatunos”. “O problema aqui é a mistura das raças, mistura-se muito tudo aqui. Isso dá sempre problema, porque há sempre alguém que está em guerra com alguém, não é assim?”, pergunta José.

Por isso, garantem que não estão surpreendidos com a manhã em que hoje acordaram.

“Isto é um filme, pá, é um filme!”, volta a dizer José. “E amanhã há mais. Porque não?”

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