“Quando temos à nossa volta pessoas que nos inspiram — pessoas que fazem a diferença na nossa vida — nós voltamos a acreditar e achamos que é possível.” A frase, da moderadora Laurinda Alves, marcou o arranque da sexta edição das “Conversas” do Observador esta quinta-feira, no Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa. A sala Luís de Freitas Branco encheu. E, com um painel rico e diversificado, conversou-se sobre Os Sentidos.
Joana Carneiro, maestrina principal da Orquestra Sinfónica Portuguesa e da Berkeley Orchestra, inaugurou a conversa e começou por explicar o seu papel: “Sou maestrina. O que eu faço é exprimir através do meu corpo qualquer coisa que deve ser clara — a mensagem de alguém, os sentimentos de alguém, [algo] que outra pessoa imaginou.” Para quê? “Para criar beleza, de uma forma uniforme, com um grupo de músicos, de almas únicas, que são a orquestra.”
Num encontro incontornavelmente marcado pelos atentados em Paris a 13 de novembro, Joana Carneiro não pôde deixar de recordar ainda outros “momentos difíceis” da história nos quais os artistas foram “veículos de beleza”. Deu os compositores como exemplo: ao longo dos tempos, “conseguiram transformar os momentos mais hediondos [da história] em momentos de beleza”. “A arte pode ser um veículo de beleza”, acrescentou, “mesmo tendo em conta um acontecimento tão horrível”. Que tem isto a ver com os sentidos? “O maestro é um veículo de emoção, de sentimentos, através de alguns sentidos”, disse. Consegue “afetar o som” através “do corpo” e através “das palavras”.
Desenvolveu, recorrendo às ideias de um outro maestro, Ricardo Muti, diretor musical da Orquestra Sinfónica de Chicago: “O maestro recebe uma partitura em casa. Tudo aquilo que se passa na orquestra está presente. Através da visão, o maestro lê a música. E essa leitura transmite-se no seu intelecto, no seu coração, em sons. Sons que só poderia conhecer e identificar, sem acesso a um piano, tendo escutado [outros] sons combinados ao longo da sua vida. Depois, o maestro não tem de dar só perceção a isto tudo. Tem de [lhe] dar sentido”, disse. “Para nós, maestros, sentidos são perceção e orientação”, indicou.
E depois? Como explica Joana Carneiro, “através do seu corpo, das suas mãos, [o maestro] tem de transmitir aquela caminhada que idealizou no seu coração e que pensa ser o desejo do compositor”, até chegar a um “universo vastíssimo”: a orquestra. Utilizando os sentidos, cada elemento do conjunto tem de ler a partitura e interpretar os gestos do maestro. Tudo isto para, “através dos seus outros sentidos”, transformarem esta receita “em som”. Em música.
Seguiu-se a intervenção do arquiteto português Camilo Rebelo, professor e também um dos responsáveis pelo projeto do Museu do Côa. Aliás, foi esse o ponto de partida: quem já esteve no Museu do Côa conhece-o porque já o experimentou “sensorialmente”. Sentiu “o vento, os pássaros, o rio a correr”, a “imensidão, a dureza da paisagem”. Mas quem “só viu fotografias” diz “que não percebe o museu”. “Durante muito tempo me pediram para explicar, de alguma maneira, o que era o museu”, conta o arquiteto.
Foram realizados vários trabalhos por fotógrafos profissionais, mas que “nunca conseguiam extrair a essência que os sentidos precisam para se compreender o que é aquele território e aquele museu naquela paisagem”, acrescentou. “Pedi a dois produtores de vídeo e disse-lhes: ‘preciso de um vídeo de dois minutos para pôr na Net e que consiga deixar essa mensagem'”, continuou. À partida, dada a complexidade do museu, disseram-lhe que “não era possível”. Mas a ideia seguiu em frente. O resultado final, que aqui reproduzimos, foi também projetado na conferência:
“A viagem para o arquiteto é absolutamente fundamental”, retoma Camilo Rebelo. “A viagem é muito importante para nós”, para “conhecermos o contexto”. “Eu preciso de sentir com tudo. Preciso de ver, de comer, de nadar. Preciso de me deixar envolver de todas as maneiras e mais algumas, para perceber o que é aquela cultura, o que é aquele sítio”, refere.
Sexto sentido. O que é?
Foi com essa envolvência que Camilo Rebelo apresentou alguns dos projetos em que tem trabalhado, projetando imagens e relacionando-os com os cinco principais sentidos. No fim, um extra: o “sexto sentido”. “Uma nova dimensão” humana, para além do homem vitruviano, para além do homem da máquina. Um “sexto sentido [que] está sempre associado à mulher”, à sua “intuição”. “Algo que a mulher não pode deixar cair”, acrescenta. Terminou com uma imagem, “uma dedicatória à mulher intuitiva”: uma medalha da sua autoria, em contraste com o pôr-do-sol. “Uma espécie de amuleto, de talismã, que potencia a fertilidade, a intuição. E que nos faz pensar no sexto sentido”, concluiu.
Com esse sexto sentido em mente, partiu-se para a apresentação do padre Nuno Tovar de Lemos. “Eu gostava de vos falar do sexto sentido”, começou o sacerdote jesuíta. Não aquela “capacidade de perceber emoções e intenções que não são óbvias”, mas um sexto sentido “muito terra-a-terra, muito próximo do senso comum”. “O sexto sentido está para nós, cá dentro. Aquilo que nós, na tradição cristã, chamamos de ‘alma'”. Assim como os cinco sentidos estão para o corpo. “[Esses sentidos] protegem-nos e guiam-nos”, defendeu Tovar de Lemos. Ilustrou com dois exemplos: quando percebemos que um ovo está podre pelo cheiro a enxofre, ou que vemos que um caminho na montanha é perigoso.
O sexto sentido atua de forma semelhante. É um sentido “que nos protege de maus negócios, de passos mal dados” e que “nos guia para coisas que são boas. Como pano de fundo? “A felicidade, a realização, aquilo que, na linguagem cristã, chamamos de salvação”, explicou o sacerdote. “É universal”, disse. Todos o têm. Voltou aos exemplos. O sexto sentido é, por exemplo, algo que nos faz perceber se um amigo está ou não está bem. Caso esteja, “a pessoa está a sair de si mesma e a avançar” para “coisas grandes”. Sem perder “muito tempo a queixar-se”, a atribuir culpas.
“Ultrapassando esses clichés todos que nos impingem, é descobrir a maravilha de eu, livremente, estar lá para o bem do outro. E estar lá para entrar em relações de dar e receber, de igual para igual, com o diferente de mim”, defendeu Tovar de Lemos. E, no fim, abriu a caixa de Pandora do que é, na realidade, o sexto sentido. Como? Dando-lhe um nome: o sexto sentido é “o sentido humano”.
O cérebro e os sentidos
A relação do cérebro com os sentidos partiu da investigadora e neurocientista Diana Prata, professora assistente no King’s College London. “Os cinco sentidos são como a porta para o cérebro e a porta para o ambiente. Para tudo o que se passa à nossa volta”, começou. “Nós, os cientistas, olhamos para os sentidos como coisas muito falíveis” e, por isso, “[trabalhamos com] instrumentos”, [repetimos] as experiências” e “[usamos] a estatística para comparar as medições”.
Mas nem por isso Diana Prata descarta a importância dos sentidos. “A verdade é que, durante milhões de anos em que não houve ciência nem laboratórios, os nossos sentidos serviram-nos muito bem para compreendermos o mundo à nossa volta”, explicou. Apesar dessa falibilidade dos órgãos que captam os sentidos — e das “incongruências” dos próprios sentidos –, “o que está bem feito é o nosso cérebro”, defendeu a cientista. “O nosso cérebro interpreta tudo o que vem dos sentidos”, afirmou.
Ou seja, se é o cérebro que faz a “integração dos sinais”, os cientistas podem criar, por exemplo, “coletes que dão audição a pessoas surdas”. Através “de elétrodos”, estes coletes “são sensíveis ao ruído e aos estímulos auditivos ao nosso redor”, permitindo a alguém surdo ter a capacidade de ouvir. “Porque é o cérebro que nos dá a audição, a visão, etc.”, referiu Diana Prata.
Regressando ao sexto sentido, a investigadora contou também que os cientistas “contrapõem a intuição com a deliberação”. Para explicar, lançou a pergunta à sala: “É mais provável que a mãe ter olhos verdes se a filha tiver olhos verdes”, ou o contrário? São estes os “intuitivos”, pois “os deliberativos” são “quem acha que não há diferenças”. “É igual a probabilidade”, referiu.
Partilhar emoções e cheiros, numa garrafa de vinho
“Na vida é importante também a partilha e dar sensações a outras pessoas”, começou por dizer Sandra Tavares da Silva, enóloga portuguesa e gerente da empresa Wine & Soul. “Ter um produto final numa garrafa de vinho é fabuloso, porque estamos a partilhar emoções, cheiros, paladares. Foi por isso que enveredei por enologia”, explicou na sua intervenção.
“A enologia é uma ciência muito completa, porque temos de ter os sentidos muito apurados”, afirmou. Não só o paladar e o olfato mas também a visão, para “analisar o vinho” ou até mesmo para olhar e “interpretar a vinha”. Deu o exemplo de uma prova de vinhos que, por norma, é “feita em três fases”. Começa-se por colocar o vinho no copo — onde se avalia “a cor, a tonalidade, a limpidez e a opacidade do vinho”. Segue-se a parte olfativa, do cheiro do vinho. E termina-se com o paladar e o tato — “ao pormos o vinho na boca, nós, com a língua, estamos também a ter o tato”, que permite avaliar, por exemplo, “a textura, a concentração, os taninos”.
E a audição? Como se relaciona ela com o vinho, com a enologia, com esse “partilhar de emoções”? “A audição está muito presente em nós quando trabalhamos numa adega, onde estamos constantemente a ouvir”, sejam os “barulhos estranhos” que podem representar “um problema com alguma máquina”, seja “a cinética da fermentação” do vinho. “Ser enóloga é uma profissão supersensorial”, afirmou Sandra Tavares da Silva.
Para fechar, novamente a música
Foi David Santos — ou melhor, Noiserv — quem encerrou a conferência. O músico português subiu ao palco não para cantar mas para explicar que “o intuitivo também se trabalha. Quando gostas [do que fazes, isso] passa a ser intuitivo ao fim de um tempo”, defendeu. A música de David Santos tem corrido o mundo e concentra em Portugal uma legião de fãs bastante significativa.
Contudo, não é só pela música que David Santos é conhecido. Noiserv rege-se sob o princípio de que tudo o que produz som pode ser usado como instrumento musical. “É perceber até que ponto um som que não é a guitarra ou o baixo comum, dentro da sensibilidade que determinada música tem, pode ou não dar mais à música”, referiu. E trouxe alguns desses objetos para o CCB, que mostrou à plateia. O músico optou ainda por partilhar mais um ponto de vista sobre o que pode ser o sexto sentido tão falado nesta conferência: “é aproveitar melhor os outros [sentidos] todos”, concluiu.
Esta conferência fecha assim o primeiro ciclo de “Conversas”, uma iniciativa que aproximou a comunidade de leitores do Observador numa série de seis conferências no CCB. “Foi uma grande conferência”, disse Laurinda Alves.
Editado por Diogo Queiroz de Andrade.