A discriminação racial é das poucas coisas que a fazem enervar e gritar. Calma, reservada, contida, mas afável, a “dra. Francisca“, como é conhecida no Ministério Público (MP), não se esquece do momento em que os seus dois filhos, com um intervalo de 20 anos, chegaram a casa a chorar por colegas da escola não brincarem com eles devido à cor da sua pele. Explicou a José, o mais novo, que “ele nunca se devia sentir mal quando alguém chamasse a atenção para a diferença da sua cor. E que sobretudo devia reagir com alguma agressividade. Sugeri que gritasse, uma coisa que vocês dizem que eu nunca faço. ‘Se for preciso gritar, grita José. Mas há uma coisa que fazes sempre, havendo um incidente destes tu reportas à professora e à direção da escola'”, revelava o Expresso no contexto de uma entrevista concedida por Francisca Van Dunem em 2009 e citando um texto escrito pela futura ministra da Justiça em 2001.
Estudante de Direito numa altura em que as mulheres começavam a entrar nas universidades, Francisca Van Dunem, 60 anos completados no dia 5 de novembro, não se esquece dos episódios que aconteceram com os seus filhos pela frustração de sentir que Portugal não tinha evoluído na luta contra o racismo. Van Dunem, contudo, diz nunca ter sentido na pele tal discriminação em termos profissionais. Na mesma entrevista ao Expresso, diz ter tido uma carreira normal. “Estaria a fazer género se dissesse que fui discriminada”, afirmou de forma serena, como costuma falar.
A independência de Angola e a morte do irmão
Nascida em Luanda, faz parte de uma das famílias mais conhecidas e poderosas em Angola e com particular influência no Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA): os Van Dunem.
É um nome tradicionalmente angolano, com quatro séculos. Vem de um holandês que trabalhou para a coroa portuguesa e se estabeleceu em Angola. Relacionou-se com uma angolana com quem teve uma larga prole. Os respetivos descendentes decidiram seguir o exemplo e há imensos Van Dunem”, explicou ao Expresso a então procuradora-distrital de Lisboa.
A origem da sua família, no entanto, gerou polémica há alguns anos, quando o escritor Pepetela, num romance com o título “A Gloriosa Família: o tempo dos flamengos”, conta a história da família de Baltasar Van Dum, um flamengo que traficava escravos durante o período em que os holandeses dominavam a colónia.
A ascensão do MPLA ao poder acabou por marcar a sua família de forma trágica. A revolução do 25 Abril, que abriu caminho para o fim da Guerra Colonial e para a independência de Angola e de outros países africanos, apanhou-a na Faculdade de Direito de Lisboa com 18 anos anos, a frequentar o segundo ano do curso. Regressou a Luanda e tentou fazer de tudo um pouco para consolidar o novo país.
Tentei portar-me bem, fazer algum trabalho útil. Trabalhei na rádio, fiz recruta militar com um homem louco. Obrigava-me a rastejar e dizia ‘cumpra-se, a vitória é certa!’. Foi um período muito perigoso porque já tinham começado os conflitos entre os movimentos de libertação. Estava tudo muito radicalizado, uns contra os outros”, contou ao semanário Expresso. Decidiu regressar a Portugal e não viu com os seus olhos o dia trágico de 27 de maio de 1977 quando uma purga interna no MPLA matou milhares de angolanos a propósito de um suposto golpe militar que visava aniquilar Agostinho Neto, então Presidente da República de Angola. O seu irmão José Van Dunem e a sua cunhada morreram nesse dia. José, militante e guerrilheiro importante do MPLA, e Nito Alves foram acusados pelo regime de Neto de liderarem o levantamento “fraccionista” do 27 de Maio de 1977.
Francisca Van Dunem só regressou a Angola nos anos 90. O seu irmão João (jornalista, líder do grupo de comunicação social Media Nova, que morreu em 2013), tentou lutar pela memória e honra de José até ao fim da sua vida.
Foi um golpe terrível. Não se trata só de perder o meu irmão e a minha cunhada, trata-se de perder uma parte significativa das pessoas com quem eu passei a minha juventude. A lógica deles era matar todos os universitários e estudantes. Os intelectuais. Mas pronto, não se vai ressuscitar ninguém”, afirmou ao Expresso. Na sequência da morte do seu irmão e cunhada, Francisca acolheu o sobrinho e educou-o como um filho.
A amizade com Cândida Almeida
Casada com o jurista Eduardo Paz Ferreira (professor catedrático na Faculdade de Direito de Lisboa e antigo sócio de Sousa Franco, ex-ministro das Finanças do Governo de António Guterres), Van Dunem sempre foi muito próxima de outra procuradora mediática: a procuradora-geral adjunta Cândida Almeida, ex-diretora do Departamento Central de Investigação e Ação Penal. Passam férias juntas e são amigas íntimas, tendo Francisca sido um grande apoio em 2008 para Cândida Almeida no momento da morte do seu marido, Maximiano Rodrigues – um dos procuradores mais mediáticos dos anos 90 e líder durante muitos anos da Inspeção-Geral da Administração Interna.
Van Dunem será a primeira mulher negra a liderar a Justiça, sendo, na prática, a sucessora de Paula Teixeira da Cruz (Fernando Negrão foi uma espécie de ministro da Justiça em gestão e por apenas duas semanas) e tendo uma terceira mulher (a procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal) como uma das suas principais interlocutoras. A posse da “dra. Francisca” como ministra da Justiça seguirá, aliás, uma tendência dos últimos anos: a liderança feminina na Justiça. A Procuradoria Distrital do Porto é ocupada por Raquel Desterro enquanto que o Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa é liderado por Maria José Morgado.
Ironia do destino, Francisca Van Dunem, até agora subalterna da procuradora-geral Marques Vidal, vai passar a ter poder de decisão sobre o orçamento da Procuradoria-Geral da República e sobre a revisão do Estatuto do Ministério Público.
Costa preocupado com o Ministério Público
A nomeação de Van Dunem representa a ascensão natural de uma procuradora-geral adjunta que já passou pelos cargos mais importantes do MP e acaba igualmente por corresponder à intenção de António Costa de nomear um magistrado para liderar a Justiça de forma a apaziguar os ânimos entre os socialistas e os agentes judiciários – com destaque para juízes e procuradores. Diversas fontes do setor de Justiça afirmaram ao Observador que a nomeação de Francisca Van Dunem é igualmente uma resposta positiva de António Costa às preocupações do MP sobre a gestão do PS para o setor, nomeadamente se tivermos em conta que o nome mais falado era João Tiago Silveira – homem muito crítico da atuação do MP. Ninguém se esquece da má relação que os governos de José Sócrates tiveram com a Justiça e muito menos a existência do processo judicial que envolve o ex-primeiro-ministro.
Nomeada diretora do DIAP de Lisboa, cargo que ocupou entre 2001 e 2007, e eleita procuradora-geral distrital de Lisboa pelo Conselho Superior do Ministério Público em 2007, tendo renovado o mandato em janeiro de 2014 para liderar o mais distrito judicial do país, Van Dunem foi igualmente falada em 2012 como uma das possíveis candidatas à sucessão de Fernando Pinto Monteiro como procurador-geral da República. O fato de ter um passado mais ligado à esquerda e ao PS, afastou-a naturalmente do cargo.
Desafios no mandato
Se Francisca Van Dunem faz da reserva a palavra-chave para atuação de qualquer magistrado, não tendo lidado bem como procuradora distrital com o protagonismo de Maria José Morgado como diretora do DIAP de Lisboa, é natural que exija o mesmo aos agentes judiciários como ministra da Justiça.
O magistrado deve ser uma pessoa reservada. O magistrado tem a obrigação de não se expor muito. Não somos propriamente estrelas do showbiz”, afirmou em 2009. Será esta a postura que passará a defender para todos os magistrados.
No seu novo cargo terá vários desafios pela frente, sendo o novo mapa judiciário e a revisão dos estatutos das magistraturas (com destaque para a do Ministério Público) os mais prementes. O que fazer com a reforma emblema da ex-ministra Paula Teixeira da Cruz (muito criticada pelo PS) e acalmar os receios nas magistraturas sobre uma eventual maior intervenção do poder político nos governos das magistraturas deverão ser as suas prioridades.
Quanto aos casos mais quentes, há, é claro, muita curiosidade em saber com Van Dunem vai lidar com processos relacionados com Angola, após terem existido muitas críticas do regime angolano à atuação a Justiça portuguesa nos últimos anos, nomeadamente em processos que visavam Manuel Vicente, vice-presidente de Angola, e o procurador-geral de Angola, João Maria de Sousa – polémica que envolveu igualmente Rui Machete, então ministro dos Negócios Estrangeiros. Sendo que alguns dos casos mais mediáticos em Portugal têm ligações aquele país, como a Operação Marquês (são investigados negócios angolanos de Hélder Bataglia, Santos Silva e José Paulo Pinto de Sousa, primo de Sócrates), o Monte Branco (onde José Paulo é figura relevante, cruzando aliás com o caso Sócrates) ou o caso BES e a relação com o BES Angola.
Uma coisa parece certa. Haja o que houver, Francisca Van Dunem pretende regressar a Angola. “Nem que seja para tratar de jardins”, assegurou na entrevista que deu ao Expresso.