Era o castigo que os meninos não gostavam de levar. Quando falavam com ordens para estarem calados, assobiavam, faziam barulho ou tagarelavam, o professor apontava para um canto da sala e lá iam eles. Ficavam virados para o cruzamento das paredes, mudos e sem nada de jeito para verem. Há muito que não se ouve falar nele porque a FIFA foi o stôr que lhe deu ordens para ficar encostado a um canto durante 90 dias. Pirralho ou não, miúdo que é castigado passa a ver o professor como o mau da fita. É assim que Joseph Blatter vê a FIFA, a entidade que manda no futebol e, no início de outubro, decidiu suspender quem mandava nela. Por isso é que calado estava até agora, em que decidiu falar para dizer que “nunca fez algo na futebol” que lhe “pese na consciência” ou com o qual se se sinta “culpado”.
O suíço que é presidente (agora suspenso) da FIFA desde 1998 estava sorridente e bem-disposto quando três jornais se juntaram para o entrevistar. Os espanhóis do Mundo Deportivo, os franceses do Liberátion e os italianos do Gazzetta dello Sport sentaram-se à frente de Blatter e ouviram-no defender-se de tudo o que lhe tem acontecido. “Não sou um demónio, nem a FIFA é uma organização mafiosa. Nas minhas crenças não acredito no inferno. Se Deus existe, é misericordioso e generoso. Não criou o inferno, portanto não existe o diabo e eu não poderia sê-lo. Amén”, disse, antes de se queixar de ter sido suspenso “sem ser citado, interrogado e ter tido hipótese de se defender”.
Poderá fazê-lo esta quinta-feira, dia em que comparecerá diante do Comité de Ética da FIFA que o suspendeu, a ele e a Michel Platini e Jérôme Valcke, presidente e vice-presidente da UEFA. “Querem-nos suspender para a vida, mas o que fizemos? Fugimos com todo o dinheiro da FIFA? Matámos alguém? Posso comparecer perante qualquer tribunal com a consciência tranquila”, questionou, dedicando palavras ao órgão que comparou “à Inquisição”.
Há dias, o L’Équipe noticiou que Blatter terá de escolher uma de duas hipóteses: uma suspensão de dois anos com o pagamento de 160 mil francos suíços (quase 148 mil euros), ou uma suspensão vitalícia. “É chocante ver as conclusões do comité na imprensa. Vai contra o direito constitucional, fundamental e individual ser ouvido antes de ser julgado e castigado. Não sei se está alguém por trás disto, se querem impedir o Michel Platini de ser presidente da FIFA ou se me querem prender uma pedras à volta do pescoço e atirarem-me à água. Ou as duas coisas”, lamentou o suíço, de 80 anos, que insistiu: “A Comissão de Ética deve intervir se o presidente atua contra a ética, mas antes deve prová-lo. Não há nenhuma acusação firme contra mim”. O homem que está há quase 40 anos da FIFA queixou-se depois que os estatutos da entidade devia ter sido “o Congresso, que o elegeu, e não o Comité de Ética”, a suspendê-lo das funções.
Em junho, e quatro dias após ser reeleito, Joseph Blatter apresentou a demissão e fez com que a FIFA agendasse novas eleições para 26 de fevereiro de 2016. Mas o suíço argumentou que não se demitiu. “Não, não, que isso fique claro. Coloquei o meu cargo à disposição, que é diferente. A situação caótica que rodeava a FIFA era tal que não podia fazer outra coisa. Quis acalmar as coisas. Não imagina as pressões que existiam. Tentaram apresentar a FIFA como uma organização mafiosa e o certo é que, hoje, a FIFA é uma vítima”, defendeu. E o suíço di-lo devido à intervenção, que vê como excessiva, da justiça norte-americana. E o suíço di-lo devido à intervenção, que vê como excessiva, da justiça norte-americana. “O desporto deve ser totalmente independente. Os EUA querem ter protagonismo em todos os aspetos, são a polícia do mundo. Há pessoas que colaboram com essa ideia e outros que não a partilham”, argumentou.
“Agora a justiça americana interessa-se pelo Qatar e acusa a justiça suíça de não se interessar pelo tema. Mas não são a polícia do mundo. Ninguém pergunta, em troca, o porquê de os EUA terem uma grande base militar no Qatar”
Blatter também falou sobre os cerca de 1,8 milhões de francos suíços que, em 2011, pagou a Michel Platini — algo que consta no processo de corrupção e desvio de fundos que a FIFA lhe instaurou a 25 de setembro. Em suma, o suíço explicou a história tal como o suspenso presidente da UEFA a contou, há cerca de dois meses: que tudo aconteceu depois do Mundial de 1998, quando Platini quis passar a trabalhar com Blatter, o suíço disse que sim, fez dele um conselheiro e respondeu que “lhe daria alguma coisa” assim que o francês pediu um milhão de francos suíços pelos seus serviços. “Foi um contrato oral, um acordo entre duas pessoas que tinham confiança mútua. Só lhe paguei em 2011 porque foi aí que o Michel me disse que estava em dívida com ele. Por isso dei ordem à administração que lhe pagasse, nada mais”, resumiu, antes de a conversa tocar no assunto dos patrocinadores.
Explicador: O que levou à demissão de Joseph Blatter
O ainda presidente da FIFA acredita que as empresas parceiras da entidade “estão interessadas em continuar no futebol” e lembrou que “algumas têm contrato até 2026”. Garantiu que os patrocinadores “confiam” na FIFA e que, “logicamente”, se interessam porque “não há muitas ofertas como o futebol”. Esta quinta-feira, porém, Herbert Hainer, diretor-executivo da Adidas — o mais antigo patrocinador da FIFA –, admitiu que a marcar alemã irá “considerar alternativas” caso o “processo de reforma” da entidade que rege o futebol mundial não “siga no caminho certo”. A Adidas tem contrato com a FIFA até 2030 e desde o Mundial de 1970 que é responsável pelo fabrico da bola oficial da competição.
E agora só falta ao rapaz que foi mandado para um canto ser ouvido por quem o mandou para lá.