António Guterres só vai declarar o seu apoio a um candidato presidencial se o Partido Socialista o fizer primeiro. Em entrevista à RTP3, o ex-primeiro-ministro e até há pouco tempo Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados garante que vai guardar “recato”.
“Acho que tenho a obrigação de não criar complicações adicionais ao meu próprio partido”, disse.
O antigo líder do PS admitiu que tem “alguma dívida com o PS” e disse compreender que muitos dos seus “correligionários se sintam desiludidos”:
“Devo dizer que acho com sinceridade que tenho alguma dívida sobretudo com o PS e tenho consciência de que desiludi muitos que pensavam que eu deveria ser candidato presidencial. Mas há uma coisa fundamental. Acho que nós na vida não devemos fazer aquilo para que temos vocação.”
Em matérias de vocação, Guterres referiu que, apesar de muitos esperarem que ele avançasse para Belém, não é naquele cargo que se sentiria bem. “A minha vocação, olhando para estes dez anos [à frente do ACNUR], eu gosto da ação, do terreno, de coisas que me obrigam a intervir permanentemente. E a minha visão do que deve ser um Presidente da República é oposto disso”, disse, para depois rematar o assunto com uma metáfora futebolística:
Acho que o Presidente da República deve ser um árbitro e eu sinceramente gosto de jogar à bola.”
De resto, Guterres pôs de lado voltar “à vida política portuguesa”. “Esse capítulo ficou encerrado”, disse.
Sobre o governo minoritário do PS, que subiu ao poder depois de ficar em segundo lugar nas eleições legislativas graças ao apoio dos partidos à sua esquerda, Guterres defendeu que essa solução é “inteiramente legítima e constitucional”.
“É muito cedo para pensar” na ONU
Se por um lado rejeito claramente um regresso à política portuguesa, não fechou a porta a uma eventual candidatura ao cargo de secretário-geral das Nações Unidas, mas também pediu tempo para refletir: “É cedo para pensar nessas coisas, até porque não depende de mim, depende de muitos fatores e é um processo muito complexo. Neste momento quero ter algum período de reflexão em relação a mim próprio”.
“Agora quero gozar um pouco a família e depois ponderar em relação ao futuro qual a melhor forma de poder aproveitar as capacidades que ainda tenho.”
Europa: “Há uma enorme quebra de solidariedade”
A maior parte da entrevista de Guterres à RTP3 incidiu no tema dos refugiados e nos dez anos do ex-primeiro-ministro à frente do ACNUR.
Ao longo da entrevista de quase uma hora, Guterres referiu vários números, que parece ter na ponta da língua. Entre todos, talvez os mais importantes: quando assumiu a liderança do ACNUR, em 2005, havia 38 milhões de refugiados no mundo e a tendência era para baixar. Em 2015, quando deixou o cargo, o número passou para 60 milhões e continua a crescer.
“Detesto falar de números, porque detrás de cada número estão pessoas, estamos a falar de pessoas que sofrem, pessoas que têm vidas muito complicadas, e apesar de tudo os números dão uma imagem da dimensão do problema”, referiu.
Foi também aos números que recorreu quando quis criticar a resposta, ou falta dela, por parte da Europa à crise de refugiados provocada por vários conflitos mas com particular incidência na guerra da Síria. O termo de comparação é o Líbano, país na fronteira com a Síria do qual se estima que tenha neste momento entre um quarto a um terço da população composta por refugiados:
“Estamos a falar de um milhão de pessoas que entrou na Europa durante um ano, ou seja, menos de dois por cada mil habitantes da Europa. Quando no Líbano temos um para cada três habitantes.”
António Guterres referiu que “há uma enorme quebra de solidariedade” na Europa, apontando a Alemanha como a grande exceção a esta regra: “Se a Alemanha tivesse fechado as fronteiras como a Hungria teríamos tido uma calamidade”.
Terrorismo vem mais da Europa do que da Síria
O ex-Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, que cessou funções com a viragem do ano e que já foi sucedido pelo italiano Filippo Grandi, também falou dos atentados de Paris. “De repente com o que aconteceu em Paris, gera-se uma situação de pânico e começamos a ver os governos a tomar, cada um deles, medidas restritivas. E de alguma forma cada um procurando que as suas condições de acolhimento de refugiados sejam um bocadinho pior do que as do vizinho.”
Apesar de admitir que “evidentemente podem existir (…) riscos de infiltração” de terroristas entre migrantes, Guterres diz que estes “são muito mais facilmente controláveis” do que aquilo que acredita ser a verdadeira origem do terrorismo na Europa:
O problema do terrorismo hoje na Europa é muito mais um problema crescido internamente, em casa. Há enormes comunidades nos países europeus, comunidades que foram integradas por vezes de forma deficiente, com situações de descriminação.”