Os jornais em Espanha não deixaram escapar um pormenor. A inspiração que outrora escorria daquele pé direito, os movimentos do corpo, sublimes e fatais, a pedir um qualquer bailado escrito só para ele, a tal visão impossível e a certeza de que os homens podem subir ao Olimpo… Tudo isso ficou para segundo plano. É que a palavra mais repetida por Zidane foi “trabalho”. Segundo a Marca, o francês deu-lhe uso 14 vezes na apresentação como novo treinador do Real Madrid.

Dizem que as inspirações de Zizou passam por Ancelotti, Lippi, Guardiola e Bielsa, mas a verdade é que pode ser um português a estar na origem disto tudo.

“Eu dizia-lhes, no Bordéus, que havia três palavras para chegar ao sucesso: trabalho, trabalho, trabalho”, conta ao Observador Toni, um homem que treinou Zinedine Zidane a meio da década de 90. O treinador português nem tinha conhecimento da tal contagem do diário espanhol. “A última vez que estive com ele e com o Dugarry, jogaram juntos no Bordéus, foi há quatro ou cinco anos num jogo contra a pobreza, no Estádio da Luz. Fui lá ao hotel onde estavam e o Dugarry, quando me viu, disse logo ‘travail, travail, travail!’; eu respondi ‘estás a ver, não te esqueceste!'”, lembra, dando a mão a uma gargalhada. Toni, de 69 anos, treinou Zizou na época 94/95.

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Quem era, afinal, Zidane? “Era um jogador introvertido. Ele tinha 21 anos e com essa idade não projetamos o futuro. O Zidane era um jogador que tinha uma técnica já fabulosa, nunca pensei que seria três vezes o melhor jogador do mundo. Nem ele pensaria em treinar o Real Madrid! Quando eu lá cheguei, ao Bordéus, o presidente disse-me que o Zidane só durava 60 minutos. Eu estava com o Jesualdo [Ferreira, o adjunto] e disse que os jogadores de classe não duram 60 minutos, duram 90. É preciso trabalhar…”, lá está o ponto de partida, infalível. Toni informou ainda que, a meio da época, o médio francês era o jogador da equipa com mais minutos. E sentencia: “O Zidane era um jogador que tinha liberdade completa, mas que cumpria a função a nível defensivo, ocupando os espaços. Foi como com o Chalana, nunca lhe poderia dar tarefas defensivas, mas defendia ocupando o espaço. Era a mesma coisa com Zidane.” Toni foi treinador de Chalana no Benfica quase dez anos.

E ele era o número 10? “Número 7, meu amigo! O Zidane cresceu (e bem) do ponto de vista tático e físico quando saiu para Itália, tal como aconteceu com o Rui Costa, quando foi para a Fiorentina. Nós jogávamos mais em contra-ataque e ataque rápido, com dois avançados, o Valdeir, um brasileiro baixinho e rápido, e Dugarry. Tínhamos dificuldade em ataque organizado, especialmente em casa”, revela, algo que é fácil de adivinhar ter sido uma dor de cabeça para Zidane: ter pouca bola. O número 10, destinado às lendas e jogadores especiais, só o usaria na seleção francesa, com a qual venceria o França-98 e o Euro-2000 — na Juventus vestiu o 21 e no Real era o 5.

E mais? “Não me perguntes se tinha manias ou rituais pá, mas lembro-me que ele tinha um pé direito… Lembro-me do que fazia nos jogos e treinos!” Mas a memória do ex-treinador dos iranianos do Tractor é um baú bem conservado, por isso basta dar um pontapé numa pedra para sair uma história. “Num jogo contra o Saint-Étienne, houve uma confusão entre um polaco deles e o Zidane, que resulta numa confusão. Houve agressões mútuas, o Zidane levou e respondeu. Conclusão: o árbitro expulsa o polaco e o jogo prossegue. Estávamos a ganhar 1-0, mas acabámos por perder, com um golo quase no fim do Laurent Blanc. Até lancei um miúdo de 18 anos, mas passados cinco minutos foi expulso, ficou igual…”

A história continua: “O jogo acabou, mas na segunda-feira foram chamados à comissão de disciplina, em Paris. O Sénac, o Zidane, o Lizarazu, o Dugarry e o diretor desportivo, o Battiston. Sabes o que veio daí? Fiquei logo sem as barras de ouro! O Sénac apanhou três meses, o Dugarry levou quatro jogos, o Lizarazu também e o Zidane, com uma coleira ao pescoço (por causa da agressão do polaco), ficou um mês parado. Na altura só podias inscrever 18 jogadores e tinhas de ir buscar ao centro de formação”, explica.

Vinte e um anos é idade para asneiras, irreverências e atitudes desavindas, mas Toni lembra um Zidane que não se metia em confusões, que não era de responder ou bater. Bom, “excetuando o lance da final do Campeonato do Mundo de 2006, que mancha a carreira dele”. É que “o mundo do futebol nunca esperava uma atitude daqueles de um jogador que já tinha sido o melhor do mundo três vezes”. A explicação para Toni é simples: “Cada um de nós tem o seu dia negro. Esse foi o seu dia negro.”

Zidane no Benfica? C’est pas possible!

“Depois das experiências em Bordéus e no Sevilha, um clube que nem dinheiro tinha quase para papel higiénico, fui para um cargo no Benfica que, penso, nem existia em Portugal: diretor desportivo. Eu sonhei em trazer para o Benfica o Dugarry e o Zidane, ainda eram jogadores do Bordéus. Eu não estava errado (risos). Era complicado era para os cofres do Benfica… Mas seria um grande negócio, por muito que se tivesse de pagar ao Bordéus. Se fosse como no tempo de Jorge de Brito, em que se foi buscar o Ricardo [Gomes], o Mozer, o Aldair, teria sido o grande negócio do Benfica, desportivo e financeiro”, conta. Dugarry, com quem Zidane tem um restaurante em Bordéus (“com o nome de um programa da televisão francesa”), e Lizarazu eram os grandes compinchas de Zizou no clube francês, revela Toni. “O Dugarry a seguir foi para o Milan e morreu aí, o Zidane era a muleta dele. Se o Dugarry tivesse ido para a Juventus…”

Zinedine Yazid Zidane foi, de facto, um jogador de sonho. Viveu inspirado por um uruguaio, Enzo Francescoli. O craque do Uruguai passou por Marselha, a terra de Zidane, apenas uma época (1989/90), mas bastou para despertar a atenção de um rapazola de 18 anos. Zizou até já andava pelo Cannes, mas aquele toque de bola que encantava o meio-campo do Marselha soava-lhe a impossível, e ele queria imitá-lo. “Nunca o tinha visto ao pé de mim, só da bancada e ele no campo. Morreria se o conhecesse. Ele, para mim, é… bufff“, disse Zizou à Fox News algures na década de 90, com problemas de expressão, como quem fala num qualquer paraíso difícil de explicar. E continuou: “Sim, tentava copiar tudo. Para mim, [eu] era ele. O que ele fazia em campo, eu queria sê-lo também.”

O sonho chegaria em 1996. E ninguém morreu. Juventus e River Plate disputavam o trono, o título de campeão do mundo, que na altura era decidido através da Taça Intercontinental. Os italianos venceram por 1-0, com golo de Del Piero, mas o que veio a seguir é que foi especial. “Ele deu-me a camisola, era para o meu filho, que se chama Enzo. Ele dormiu com ela…”, contou. Francescoli vestia a camisola 9, pois a 10 estava entregue a Ortega. Mais tarde, Francescoli sentenciaria que o “aluno era superior ao maestro, por tudo o que conquistou”.

Voltemos a Toni. “Zidane é introvertido. Repara na forma como falou na apresentação. Um treinador veste a pele de ator, o treinador é um ator, o palco é o banco, onde falas para comunicação social e para todos, adeptos e jogadores. Ele revela ser tímido, é bom rapaz…” O Real Madrid, diz Toni, é “um clube universal” e o ex-jogador saberá que não chega ganhar. “Hoje o Real Madrid não tem tão bons executantes como o Barcelona, mas tem um jogador que lhe dá dimensão: o nosso Cristiano Ronaldo. Zidane vai querer moldar a equipa àquilo que são as suas ideias e convicções, transmitindo-o no trabalho de campo e treino. Agora vai tentar encontrar compromisso e cumplicidade à sua volta. Ninguém está à espera que saia um futebol todo burilado.”

O treinador português levanta ainda o véu sobre o já sabido lado negro da moeda: “Ele conhece o meio, os egos, já fez parte desses egos que estão do lado dos jogadores. Agora tem de os gerir. Olhas para o banco e tens lá 200 milhões, todos querem jogar. Até no Tractor! Depois de treinar gajos como Rui Costa e João Pinto, sei lá, quando meto alguém no banco parece que meti lá o Messi”, conta, com um sorriso que se adivinha de orelha a orelha, do outro lado da linha.

Zinedine Zidane, 43 anos, estreou-se como treinador principal no ano passado no Castilla, a segunda equipa do Real Madrid, que disputa atualmente a terceira divisão espanhola. Os jovens merengues terminaram em sexto lugar. Este ano, Zizou seguia a bom ritmo para lutar pelo grande objetivo: a subida à segunda. O Castilla segue em segundo lugar, a quatro pontos do Barakaldo, com 12 vitórias, cinco empates e duas derrotas em 19 jornadas. Agora seguem-se os graúdos, os tubarões, os craques, os monstros, as divas, os génios e os egos. Tudo, tudo cozinhado e com muitas rasteiras e armadilhas para Zizou usar a sua famosa roulette, agora em forma de ideia. Para isso e para contrariar a História: quantos jogadores de classe mundial se transformaram em treinadores gigantes? Johan Cruyff, Franz Beckenbauer… Mais? A estreia está agendada para este sábado, dia 9 de janeiro, às 19h30: Real vs. Deportivo, um clube a quem Zidane fez isto.

O francês admitiu que jamais se sentira tão emocionado como na hora da apresentação como treinador dos merengues, nem quando a mesma aconteceu como jogador: “É um desafio difícil, sinto alguma emoção, como sentia ontem… [mas] passará. Estou convencido do trabalho que farei dia a dia, não sou de falar muito, mas não há problema. Tenho ilusión e só quero transmitir uma coisa: ganhar.” Toni não tem dúvidas: “Se for o treinador que foi como jogador, então podem abrir lá espaço para os troféus! (…) Pode ser que um dia destes dê uma saltada a Madrid, para ver um jogo e para lhe dar um abraço. Pode ser que ele ainda me conheça, ainda tenho o meu bigode! Eh, eh, eh!”