Um artigo publicado este mês na Folha de S. Paulo lançou a bomba: uma caixa com inéditos de Fernando Pessoa teria sido alegadamente encontrada numa garagem na África do Sul, país onde Pessoa viveu até à sua partida definitiva para Lisboa, em 1905. Ao todo, seriam cerca de dois mil textos, que faziam parte do espólio de Hubert Jennings, um inglês apenas oito anos mais velho do que Pessoa que dedicou parte da vida ao estudo da obra do poeta. Contudo, os “inéditos” são, na sua maioria, uma reunião de transcrições de poemas ingleses de Pessoa feitas por Jennings na década de 60, a maioria já publicados. Os documentos poderão nem incluir textos desconhecidos dos estudiosos da obra do poeta.
Hubert Jennings nasceu em Inglaterra em 1896. Em 1923, mudou-se para a África do Sul, onde trabalhou como professor na Durban High School, a mesma escola onde Fernando Pessoa havia estudado vários anos antes, entre 1899 e 1904. Mais tarde, já reformado, começou a ganhar interesse pela obra do poeta quando, a propósito do centenário da instituição, foi convidado para escrever a sua história. De tal forma que, em 1968, fez as malas e mudou-se para Portugal.
Jennings chegou a Lisboa no ano da queda de Salazar. Ficou 18 meses e, com uma bolsa atribuída pela Gulbenkian, dedicou-se ao estudo da obra de Pessoa. Aos 72 anos, tornou-se num dos primeiros biógrafos do poeta e num dos primeiros investigadores a interessar-se pela sua obra de língua inglesa. O livro que escreveu sobre os anos de Pessoa em Durban, Os dois exílios: Fernando Pessoa na África do Sul (1984), é ainda hoje uma referência para muitos investigadores.
Mais recentemente, o espólio de Jennings sobre Fernando Pessoa foi doado pela família à Universidade de Brown, nos Estados Unidos, onde funciona um importante núcleo de estudos pessoanos. Entre as várias dezenas de documentos, contam-se várias transcrições de poemas ingleses de Pessoa (à data inéditos) e duas cartas de Henriqueta Manuela e Luiz Miguel, meio-irmãos do poeta, enviadas ao estudioso inglês nos anos 70.
O acervo inclui também o manuscrito de The Poet of Many Faces (1974), uma compilação de poemas ingleses que nunca chegou a ser publicada. Caso a edição de The Poet of Many Faces se tivesse concretizado, esta teria sido a primeira contribuição para o estudo da obra inglesa de Fernando Pessoa.
A formaçao inglesa de Pessoa
Dada a importância do trabalho desenvolvido por Jennings, a revista Pessoa Plural, editada pelo Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros de Brown, decidiu dedicar o seu mais recente número ao investigador.
A edição de outono da revista académica, editado em dezembro, inclui vários artigos, documentos, críticas e tributos com fac-similes e transcrições de material inédito que se encontrava no espólio de Jennings e que, graças à doação da família à universidade, puderam finalmente ser avaliados pelos pessoanos. Um dos artigos, “Bridging Archives: Twenty-Five Unpublished English Poems by Fernando Pessoa”, escrito pelo argentino Patricio Ferrari, inclui 25 poemas inéditos escritos em inglês por Pessoa entre 1904 e 1935.
Dois deles, os inacabados “What’s wrong with what’s right with my heart is another” e “High Dedication to Cold and Vast Ends“, fazem parte do espólio de Jennings, tendo sido transcritos por este no final da década de 60. Porém, os dois textos não são uma novidade para os investigadores. Ao Observador, Patricio Ferrari esclareceu que os originais de 24 dos 25 poemas referidos no artigo estão guardados na Biblioteca Nacional de Portugal, juntamente com todo o material que se encontrava no interior da arca. Um dos poemas encontra-se ainda na coleção particular da família de Pessoa.
Apesar disso, o investigador considera que o trabalho de Jennings “não pode ser ignorado pelos futuros editores críticos da poesia inglesa póstuma de Pessoa”, uma vez que o estudioso inglês foi um dos primeiros a mostrar um verdadeiro interesse pela obra em inglês do poeta dos heterónimos. “Alguns dos poemas ingleses datilografados, que Jennings transcreveu quase há 50 anos, permaneceram durante muito tempo por publicar”, frisou no artigo publicado na Pessoa Plural.
“Poemas em francês por editar não há. Poemas em português por transcrever e publicar são poucos. Em inglês, há ainda umas boas dezenas. Há poemas completos e muitos incompletos. Apesar de em muitos deles não faltarem palavras, isso não significa que sejam uma versão final”, explicou ao Observador.
Na opinião de Ferrari, só após um estudo profundo do espólio de Jennings se poderá saber se há ou não textos em inglês de Pessoa que não se encontram na Biblioteca Nacional. A verdade é que o acervo está longe de ter sido estudado na sua totalidade. “Prefiro salientar que Jennings foi um pioneiro. Transcreveu poemas que, durante muito tempo, permaneceram inéditos e que só a partir dos anos 80 começaram a ser publicados”, frisou o pessoano.
Jerónimo Pizarro, um dos editores da Pessoa Plural, é mais otimista. “Tenho a certeza quase absoluta de que há indícios de que pode haver materiais que não estão na Biblioteca Nacional”, disse o colombiano ao Observador. “Foi um dos primeiros a olhar para o espólio da família e talvez tenha sido o primeiro a escrever uma dissertação tendo presente o que lá estava. Alguns dos estudiosos mais antigos nunca passaram pelo espólio e Jennings, se não é o primeiro, é um dos primeiros. Fez muitas transcrições, e nunca pensou em escrever sobre Pessoa sem inventariar primeiro o que estava com a família.”
Para além disso, Pizarro garante que é importante olhar para a obra de Jennings para entender “a formação inglesa de Pessoa”, a relação com a tradição britânica e “até que ponto foi um sonho de Pessoa ser um poeta inglês”. “Jennings foi um dos poucos que foi à procura do que está em inglês. Existe muita coisa inédita e sabemos muito pouco dos escritos em inglês. Grande parte do que continua inédito deve-se ao facto de ter sido escrito em inglês.”
Por esse motivo, o investigador considera que a obra inglesa de Pessoa deveria começar a ser estudada nos departamentos de estudos ingleses, tornando assim acessível textos que, por serem escritos em língua inglesa, são mais universais.