Banda: Salto
Álbum: Passeio das Virtudes
Editora: Edição de autor
É difícil manter relações a quatro. É mesmo. Mas os Salto juntaram mais dois à dupla que já existia e não o fizeram por acaso. Queriam ser mais do que tinham conseguido antes. Mais festa e menos gravidade. E se é para dar uma de voo orbital, melhor ter força para lá chegar acima. Podíamos até escrever que este foi um salto para a banda. Mas isso era quase ridículo. Muito melhor é dizer que Passeio das Virtudes é um belo disco de pop ambiciosa e que nada vai ficar como era para este grupo de boa aritmética.
Os Salto eram Guilherme Tomé Ribeiro e Luís Montenegro. Estava tudo bem com eles mas não lhes bastava a coolness de quem é jovem eléctrico. Era mais ou menos isso que se ouvia no primeiro álbum, uma espécie de podia-acabar-o-mundo que eles, no meio daquela alegria noctívaga sem fim, não iam dar por ela. O que aconteceu depois foi o costume. A satisfação passou depressa e no lugar vago ficou o “e agora?” da praxe. Melhor que isso, ficou a certeza que mais do mesmo não, se é para isso então adeus. Por isso surgiram Tito Romão e Filipe Louro. Porque os Salto queriam fazer canções maiores, mais espaçosas e com menos compromissos. E estes quatro, tal como os vemos agora, podiam dar conta do recado porque juntam o que importa: têm a técnica e o gosto. Está mais que na cara que Passeio das Virtudes foi feito com muito trabalho e um gozo imenso. E quando isso sai do estúdio para ficar estampado no disco, então aí a corrida está ganha.
São 12 canções e está sempre alguma coisa a acontecer, sem excessos e com boas justificações. Foram elas, safadas, que se chegaram à frente, a rapaziada respeitou e fez do disco uma muralha sonora equilibrada e dinâmica. A guitarra dança com o sintetizador num bailarico que atravessa todo o álbum. É daí que vem a estrutura das canções – pelo menos é essa que quem ouve mais nota. E é por isso que foram precisos quatro músicos para dar a volta a este ex-duo: Passeio das Virtudes é feito de diálogos, há jogos de ping-pong instrumental a cada esquina, que sem serem concursos de destreza servem para chegar mais longe. E sem nunca deixar de lado o mais importante, canções em ponto caramelo, ora bem.
É preciso um exemplo? Vamos a isso. O single “Lagostas” (óptimo título para uma canção, óptimo) é uma electro-garagem irrequieta, a pedir Verão em todos os versos mas com os tiques próprios de quem tem a mania de vestir o blusão de cabedal faça frio ou escalde o ar. Rock bronzeado mas óptimo para mostrar num clube apertado durante o Inverno. É electrónico, é solarengo, mas também é distorcido com classe. E ver essas duas equipas a jogar do mesmo lado é um derby em que ninguém perde. Uma sorte.
Os Salto também fazem uso de um truque tramado de pôr em prática porque em muitos casos dá direito a tropeções. Fazer com que uma canção percorra vários caminhos ao mesmo tempo e em todos eles se chegue a igual destino é boa obra complicada de assinar sem desvios. “Mar Inteiro”, que também já vem do ano passado, começa em A, passa pelo B, ainda arrisca um C e a nós nada disso parece estranho.
É o tal prazer em não ter sempre os pés na terra. Passeio das Virtudes é um daqueles discos que mostra bem para que servem os estúdios, para que vale um espaço que nada mais tem a não ser tempo para tocar e gravar. Nos 12 temas há uma boa quilometragem verbal, cantam-se muitas sílabas mas dão-se todas bem porque todas tiveram tempo de reforçar laços – daí que frases como “um dia já no caixão os bichos não me hão de julgar” estejam certíssimas e entrem na roda do baile com toda a graça. Para isto é preciso trabalhar, senhores, não é chegar lá e empurrar a ver se cabe. Um trabalho que, sem aviso, gera momentos que não estavam planeados, curtos minutos em que tudo flutua e, vai-se a ver, ainda bem que estava a gravar. E é por isso que o mesmo disco que tem temas como “Selva” (onde a pop arrisca ter cinco minutos e vontade de ser mais sinuosa do que seria de esperar) também guarda espaço para canções-quase-interlúdios como “César” ou “O Sonho da Cidade Branca”. Parecem curtas paisagens e o desvio é bom de ouvir.
Com tudo isto, os Salto conseguem ser mais complexos e, ao mesmo tempo, mais livres. Há muito mais a acontecer mas também há mais espaço para fazer de novo. É provável que isso mesmo aconteça quando Passeio das Virtudes se atirar aos palcos. O que é fixo, fixo está, e essa segurança é um trunfo. Mas como isto é gente que toca ideias como quem troca canções, tudo pode acontecer quando ao vivo os verbos voltarem a mudar de lugar, uma e outra vez.
Os Salto apresentam “Passeio das Virtudes” ao vivo este sábado, dia 30, no Estúdio Time Out Mercado da Ribeira, em Lisboa, às 22h.
Tiago Pereira é crítico de música do Observador.