O primeiro dia daqueles que prometem vir a ser quatro meses muito agitados na política britânica foi este domingo. Depois de David Cameron ter marcado o referendo à permanência na União Europeia para dia 23 de junho, os dois campos da contenda começam a posicionar-se e o primeiro-ministro tem dois desafios importantes pela frente: explicar o acordo que alcançou em Bruxelas, convencendo os eleitores de que ele é bom, e evitar uma rutura total dentro do seu próprio governo.
A tarefa não é fácil. Poucos minutos depois de Cameron se afastar dos jornalistas em Downing Street, já vários ministros seus tinham anunciado que vão fazer campanha pelo leave, ou seja, pela saída da União. Entre eles estão Michael Gove, que tem a pasta da Justiça e é amigo pessoal de Cameron há muitos anos, mas também Iain Duncan Smith, ministro do Trabalho. Olhando para o mesmo documento, o primeiro-ministro e os opositores da permanência têm leituras diferentes, o que demonstra que a missão de Cameron pode ser ainda mais complicada do que foi conseguir convencer os 27 Estados-membros da União a ceder no que cederam.
Por exemplo, o primeiro-ministro britânico considera que o país fica “mais seguro e mais forte dentro da UE”, mas Iain Duncan Smith está longe de partilhar do mesmo entusiasmo. “Esta política de fronteira aberta não nos permite verificar e controlar as pessoas que vêm e ficam cá”, disse o ministro numa entrevista à BBC, sugerindo mesmo que ficar na União coloca o Reino Unido num risco mais elevado do que sair. “Nós vimos o que aconteceu em Paris, eles perderam imenso tempo a planear e a conspirar, por isso não é descabido pensar que esses [imigrantes] possam já estar a pensar nisso”, afirmou.
Penso que, com o atual estatuto de fronteira aberta que temos neste momento, muitos de nós sentem que a porta está aberta e precisamos de resolver isso”, sustentou o ministro.
Numa outra entrevista à BBC, o primeiro-ministro britânico rebateu o argumento. “Se sairmos da UE, talvez fiquemos com uma sensação de soberania. Mas será real?”, questionou David Cameron, dando exemplos concretos do que quer dizer com aquilo a que chama “ilusão de soberania”.
Teríamos o poder de ajudar as empresas a não ser discriminadas na Europa? Não, não teríamos. Teríamos o poder de pedir aos países europeus que partilhassem connosco as suas informações sobre as fronteiras para que soubéssemos o que é que os terroristas e criminosos andam a fazer na Europa? Não, não teríamos.”
Boris Johnson, uma dor de cabeça
A divisão que vai dentro do governo é apenas um espelho do que se passa fora e pode crescer nos próximos tempos. Enquanto lida com os ministros, David Cameron tem outra dor de cabeça com que se preocupar. O presidente da câmara de Londres, Boris Johnson, já disse que vai apoiar a campanha do “não” à União. E isso é relevante porque Boris, como é conhecido por muitos londoners, é uma figura influente dentro e fora do Partido Conservador e uma palavra que lhe saia da boca sobre este tema pode ter um efeito decisivo sobre a forma como a campanha vai decorrer.
Festejado como uma grande vitória para o Reino Unido por David Cameron, o acordo obtido em Bruxelas na sexta-feira à noite foi recebido com um misto de alegria e apreensão em alguns editoriais de jornais europeus, mas não convenceu muitos britânicos, que esperavam bem mais do pacto. O líder do Partido Trabalhista, por exemplo, pensa que o primeiro-ministro britânico ficou muito aquém daquilo a que se tinha proposto — mas vai fazer campanha pela permanência na UE.
As diferentes visões sobre o acordo
Os jornais europeus dividiram-se na análise que fizeram ao acordo conseguido pelo Reino Unido na Europa. Se o francês Le Figaro foi duro com David Cameron, o alemão Die Welt aplaudiu a posição britânica. “Se o Reino Unido ficar na União Europeia com as condições que conseguiu, mata-a. Se sai, mata-a também”, lê-se no Le Figaro, que não esconde o tom crítico.
Ninguém tem, a partir de agora, nenhuma razão para se sujeitar a regras comuns, dado que os países podem simplesmente escapar-se a isso com um bocadinho de chantagem.”
Já o Die Welt considera que “Cameron prestou um serviço inestimável à Europa” ao “libertá-la do fardo” da obrigatoriedade de se construir uma união cada vez mais próxima. Seja qual for o caminho escolhido pelos britânicos, a União Europeia vai mudar. Só não se sabe ainda quanto.