No local da Hummingbird, uma Organização Não-Governamental (ONG) britânica no coração desta “cidade” de lata, barracas e tendas, o movimento é constante. Os voluntários oferecem todo o tipo de apoio aos migrantes que vão aparecendo. Botijas de água quente para lutar contra o frio, café ou biscoitos, produtos de higiene, desinfetante, conselhos, sorrisos e dois dedos de conversa. “Temos de fazer isto. São seres humanos. Ninguém está a ajudar, então cabe-nos a nós fazê-lo”, diz Eilen.

Para além das associações locais e das grandes ONG, é visível a presença de muitos voluntários britânicos, impressionados pela determinação destes milhares de pessoas que desejam chegar ao Reino Unido.

O campo tem centenas de barracas, tendas, toldos, oleados, erguidos num gigantesco lamaçal. As condições sanitárias são indignas: lixo por todo o lado, charcos de água esverdeada estagnada, poucas latrinas. Aqui sobrevivem migrantes que fugiram da situação nos seus países: Iraque, Síria, Eritreia, Afeganistão, Paquistão, Egipto, entre outros países do Médio Oriente e de África.

Procuram o sonho britânico, mas as suas vidas transformaram-se num pesadelo em Calais, a escassas centenas de metros do porto e do túnel da Mancha, altamente patrulhados. Alguns talvez recebam asilo, muitos outros deverão regressar.

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“Não posso pedir asilo aqui. Tenho família no Reino Unido e se pedir asilo aqui talvez não consiga ficar em França. É difícil ficar aqui”, afirma o iraquiano Mantezar, 23 anos. Está há três meses e meio no campo e espera juntar-se ao pai e à irmã que estão no Reino Unido. “Estamos à espera porque as fronteiras estão totalmente fechadas”, explica Ali, um jovem afegão a viver há meio ano em Calais. “Estamos a tentar ir de forma legal ou ilegal, de qualquer forma, para ir ter com as nossas famílias”, ao Reino Unido. Ali afirma que fez uma longa viagem, atravessando 12 países, para chegar ao Reino Unido.

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@Vasco Gandra/ Calais

Quantas pessoas aqui esperam e procuram uma oportunidade para passar a Mancha? É impossível dizer ao certo. Por razões de segurança e de salubridade, as autoridades francesas pretendem demolir parte do campo, a chamada zona sul, onde calculam que vivem cerca de mil pessoas. Mas as associações humanitárias fazem outras contas e apontam para 3500 migrantes.

São sobretudo homens jovens. Mas também há muitas famílias e crianças aparentemente sozinhas. As ONG pedem que se encontre uma solução para estes menores antes de o campo ser parcialmente demolido.

As autoridades francesas oferecem abrigo em contentores equipados para o efeito, numa zona ao lado do campo. Já lá estão dezenas de contentores com pessoas a viver. Mas as associações dizem que não há lugares para acomodar toda a gente e muitos migrantes não estão convencidos com a solução.

Calais: a outra “cidade”

O campo está a 10 minutos de carro do centro da pequena cidade de Calais. No caminho veem-se dezenas de migrantes a deambular. Chegados ao campo, estão duas furgonetas da polícia. Entra-se, depois, numa torre de babel feita de desespero, miséria e solidariedade: aqui acabou por se desenvolver uma quase “cidade”, que parece não ter fim.

Há “ruas”, restaurantes e cafés com cartazes em inglês e árabe, onde se juntam grupos de homens. Há mercearias, igrejas e outros locais de culto, e até um “hotel”. Várias barracas foram pintadas, numa ou noutra surge a bandeira palestiniana. Por todo o lado, veem-se grupos de voluntários com os seus coletes laranjas ou verdes.

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@Vasco Gandra/ Calais

Algumas associações estão ocupadas em fornecer ajuda médica básica. Outras estão concentradas na distribuição de alimentos e roupa. No centro de apoio jurídico, vários voluntários britânicos e franceses dispensam em árabe alguns conselhos sobre procedimentos de asilo e estadia. Aqui o movimento é constante e há pessoas à espera de vez.

Ao lado deste centro, está a barraca do Secours Catholique e mais à frente um grupo de jovens espera vez para cortar o cabelo. E há crianças a brincar e a correr. Numa mesa mais adiante, um grupo de homens discute em voz alta, visivelmente em discordância uns com os outros.

Uma trabalhadora da ONG Solidarités tenta convencer uma criança a abrigar-se. “Tem 12 anos”, diz surpreendida. “Está com amigos, e não quer. Procuramos pessoas que queiram abrigar-se, que queiram sair daqui”, para outros locais, explica. “Vemos tudo isto, mas também há aqui muito calor humano. É incrível.”

Os números da "selva"

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Segundo dados fornecidos pela prefeitura de Pas-de-Calais ao jornal Le Monde, na “selva” de Calais vivem 3700 refugiados e migrantes.

  • 3455 pessoas estão instaladas na zona Sul, indicou um recenseamento feito entre 15 e 18 de fevereiro
  • 293 menores estão ali sem qualquer familiar a acompanhá-los
  • 96% vivem em barracas
  • 4% vivem em tendas

“Estamos a trabalhar juntamente com outras organizações não governamentais e projetos, para tentar criar algumas infraestruturas nos campos de refugiados. Para que (eles) tenham acesso a uma bebida, um chá, e para que possam satisfazer as suas necessidades básicas”, diz Eilen da Hummingbird, com um sorriso de orelha a orelha.

Assim passa mais um dia frio e cinzento no campo de refugiados de Calais. Entretanto, receando que o anúncio da demolição parcial do campo leve muitos migrantes ao território belga, para tentar a sua chance no porto de Zeebruge, as autoridades da Bélgica restabeleceram os controlos policiais junto à fronteira com a França.

A situação envolve portanto vários estados-membros da UE, a começar pela França e o Reino Unido. Em Calais também está em jogo a política de migração europeia, o espaço Schengen e a decência da Europa.

Evacuação ganha na justiça francesa

A ordem para evacuar a zona sul da “selva” de Calais partiu da prefeitura de Pas-de-Calais e o ultimato para que as pessoas saíssem terminava na quarta-feira. Perante a iminência da decisão, várias ONG, entre elas a Emmaus, a Fnars e os Médicos do Mundo, interpuseram uma providência cautelar num tribunal francês com vista a impedir o avanço da medida.

As ONG argumentavam que a operação de desmantelamento de parte do campo tinha sido decidida sem que fossem tomadas medidas preventivas e sem que existissem soluções para recolocar os milhares de pessoas que ali vivem — as ONG estimam que seriam afetadas 3000 pessoas.

Mas embora a juíza não tenha dado razão às ONG — não aprovando a suspensão do desmantelamento do campo — deixou explícito que a evacuação deve ser “progressiva”. A mesma ideia já tinha sido referida pelo primeiro ministro francês, Manuel Valls, que garantiu que a saída das pessoas deveria ser faseada, e feita no tempo “necessário” de forma a que exista uma resposta humanitária para os refugiados e migrantes. A ideia é, portanto, “convencer” as pessoas a saírem dali.

Mas a resposta do milhão de dólares continua por responder: sair para onde?