“Os romances partem de perguntas para as quais não há uma resposta clara”. A frase é de Javier Cercas, nascido em 1962 em Cáceres, autor de obras como A Velocidade da Luz (Asa, 2006) e Anatomia de um Instante (Dom Quixote, 2011) e é dita numa pausa do encontro literário que lhe atribuiu um prémio por uma obra que publicou em Portugal há dois anos. Cercas, embalado pela felicidade de um reconhecimento que lhe pode trazer mais leitores, fala dos seus dois últimos livros editados cá.
No último dia, durante o momento da entrega do prémio, referiu-se à circunstância de ter nascido muito perto da fronteira com Portugal, na região da Extremadura. Havia obras portuguesas nas bibliotecas familiares como as dos mais óbvios Fernando Pessoa e Eça de Queirós e do menos óbvio Mário Cesariny.
Revisitemos os seus dois livros mais recentes editados em Portugal. O Impostor, lançado em Outubro do ano passado, ainda é mais conseguido do que o que motivou a distinção. Pela sua originalidade e força, permitindo, através dos malabarismos de uma persona, fazer refletir a História de um país em tema mais do que delicado.
O escritor começa por se confrontar com a sua obsessão de escrever sobre uma figura que retocou o seu passado de forma a deixar uma imagem pública impressionante: Enric Marco, que contou em público que foi um resistente antifascista, sobreviveu aos campos nazis (quando na realidade esteve preso numa penitenciária comum e foi para a Alemanha contratado por uma empresa germânica no âmbito de um acordo entre a Espanha e a Alemanha) e presidiu à associação espanhola dos sobreviventes. Alguém que dourou os factos para se tornar um herói e levou tempo a ser capturado na mentira. Segundo escreve Cercas no livro, o ditado “quase sempre se apanha mais depressa um coxo que um mentiroso” é falso, “sobretudo se o mentiroso é tão experiente como Enric Marco”.
Para quem se interessa pelos processos da criação literária, “O Impostor” é um ensaio muito pertinente sobre a “flor de obsessão” que muitos escritores são. Por mais que façam para evitar certos temas e personagens, são muitas vezes perseguidos pela pulsão de escrever sobre estes. Para tentar explicar o fenómeno, Cercas, mais do que desvelar uma visão misteriosa sobre o assunto, faz referência a uma tese de alguém da área neurologia com quem se cruzou em Porto Rico. “Não somos todos livres”, diz Javier, distinguido por vários prémios, como o Nacional de Literatura (Espanha) e o The Independent Foreign Fiction.
Sonhos e realidade
Em grande parte do livro, Cercas assume-se também como alguém que joga com imposturas — a mistura da verdade e da mentira literárias — para chegar a outro impostor. Ficou-lhe na cabeça uma frase que Vargas Llosa lhe terá dito durante um jantar: “Não te dás conta? Marco é uma personagem tua! Tens de escrever acerca dele!”. Uma sentença que ao mesmo tempo lhe causou satisfação e incómodo. E que o atingiu ainda mais quando formulada de forma direta e franca pelo escritor e seu amigo Ignacio Martínez de Pisón. Interrompeu o silêncio de uma conversa para dizer, com uma gracejante franqueza, que ele era pessoa certa para se atirar ao relato.
A certa altura, Cercas, motivado pela autenticidade dos conselhos dos amigos e também por um texto de Claudio Magris (que classificou Marco como um ficcionista com qualidades superiores), anota essa possibilidade de a figura se aproximar à do escritor. Que o escritor escreve, narcisisticamente, por não se satisfazer com a sua vida — e que terá sido o mesmo motivo que o levou a moldar a sua biografia conforme a sua imaginação e conveniência. “Marco fez da sua vida um romance”. Mais à frente, Cercas convoca Dom Quixote – ambos quiseram ter uma vida fantasiosa a partir dos 50 anos, depois de uma existência de aborrecimento. Com uma diferença:
“O que define Dom Quixote, como o que define Marco, não é o facto de confundir a realidade com os sonhos, (…) é o querer tornar os sonhos realidade.”
Traz, para tornar ainda mais complexa a reflexão, dois apontamentos importantes. Durante os anos da mudança da ditadura para a democracia “Espanha foi um país tão narcisista como Marco” e o personagem foi elevado pelos media com a banda sonora de A Vida é Bela como pano de fundo.
Outra dimensão com especial interesse é a relação que o escritor vai desenvolvendo com a figura que quer desmontar. Vai da repulsa (que dava origem a discussões) à proximidade (“A verdade é que chegou uma altura em que o que sentia por ele era afeto, de vez em quando uma espécie de admiração que nem eu próprio sabia explicar e que me perturbava”). Uma empatia que não o livrou do objetivo de o querer desmontar.
Mas quem é que teve o domínio sobre a situação? A figura desmacarada ou o escritor-investigador? É colocada a hipótese de ter sido Marco a guiar Cercas, pondo-o à prova. Tentando perceber se era digno de fazê-lo voltar a ser visto como uma figura comum, sem heroísmo nenhum na bagagem. Tal como aconteceu à famosa personagem de Cervantes que, no final, volta à sua condição quotidiana.
Um dos momentos mais vibrantes do livro acontece mais para o fim, quando o autor dialoga imaginariamente com o impostor, pondo-se em causa, dando-se à luta, chamando-se nomes, fragilizando-se, tentando resolver a tendência que originou ao publicar Soldados de Salamina (editado em 2002 pela Asa), sobre um soldado republicano que no fim da Guerra Civil Espanhola finge não ver um intelectual falangista e o deixa escapar-se. Ao fazer isso, colocou na moda a “memória histórica” e beneficiou pessoal e comercialmente com o facto de os leitores confundirem realidade e ficção. Esse diálogo fantasmagórico como que reacende um livro que se vai tornando num motor repetitivo de ocorrências e farsas.
Com um pormenor final tão importante como fascinante, O Impostor, além de ser um ensaio sobre a matéria confusa de que se faz a mente de um escritor, é um livro crítico do modo leviano como um país procurou contar-se e reconstituir-se em tempos-limite (algo que não é exclusivo de Espanha, atravessa todas as “sociedades do espetáculo”). Mas também é sobre o modo como o ser humano se narra. Na vida, na escrita, na História, no dia-a-dia. Torna-se particularmente pertinente numa altura em que se usa todo o tipo de artifícios internéticos em busca de uma aceitação e de um aplauso. “Marco é o que todos os homens são, só que de uma forma exagerada”.
Verão azul
As Leis da Fronteira, que recebeu o prémio das Correntes d´Escritas, é um romance autobiográfico? “Sim, como todos”, responde. O livro foi formulado a partir de uma uma hipótese: e se o escritor tivesse vivido uma vida que não a dele? Situemos no tempo e no espaço a ação: durante o verão de 1978, um adolescente, Ignacio Cañas, conhece dois delinquentes e transforma com isso a sua existência protegida em contexto familiar de classe média. Cercas não foi esse adolescente mas podia ter sido. Não habitava o bairro marginal onde decorre a ação mas uma vez visitou-o enquanto jogador de andebol em idade juvenil. “Passei para o outro lado do rio e vi a miséria. Isso assombrou-me”.
Dessa sombra que perdurou no tempo surge um romance que nada tem a ver em estilo com o mais recente O Impostor. É uma experiência formal muito distante, surpreendendo pelo modo como faz conviver registos diferentes, sem revelar os truques que usa. “A arte verdadeira esconde os artifícios.” Muitos diálogos, por exemplo, são, em várias zonas do romance, incorporados com orgânica naturalidade e desenvoltura na narração, sem interromper a fluência do que se conta.
Tal como acontece no último romance publicado em Portugal, Cercas, assumindo o objetivo de retratar um conjunto de jovens que encheram as prisões espanholas nos anos 80 (embalados por séries televisivas), persegue em especial outra personagem. Já não é Marco mas sim Zarco, frequentador da sala de jogos Vilaró, bairro de La Devesa (cidade de Girona). “Um tipo que ia conquistar o mundo” e que era na realidade “um perdedor nato”. Há outras figuras, muitas delas descritas com epítetos (“Gordo”, “Tío”, “Rocky Balboa”, “Drácula”). E ainda há Tere, que logo nas primeiras páginas seduz Gafitas, protagonista/narrador, numa escapadela à casa de banho das mulheres. Alguém que foi sempre visto como “um beto” no interior de um gangue e que, para acompanhar os hábitos do grupo, começou a consumir droga e a participar nas investidas criminosas.
Trinta anos depois, um escritor acumula dados para escrever um livro sobre a biografia de Zarco, transformado entretanto num mito marginal. Gafitas surge agora como advogado de sucesso que assume uma crise pessoal, “um sentimento de inutilidade”, enquanto tenta que Zarco, ressentido, queixoso do tratamento dos guardas, saia da prisão. E há o aprofundamento, décadas depois, da relação com Tere, a sua paixão antiga, a partir de certa altura uma pessoa em evidente decadência.
“Tratar a passagem do tempo destes personagens excessivos era decisivo para este projeto literário.” A melhor literatura continua a perseguir, com outras histórias e experiências de estilo, os temas de sempre.
Nuno Costa Santos, 41 anos, escreveu livros como “Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco”, “Às Vezes é um Insecto que Faz Disparar o Alarme” e “Vou Emigrar para o Meu País”. É autor de, entre outros trabalhos audiovisuais, “Ruy Belo, Era Uma Vez” e de várias peças de teatro.