Jacqueline Fox morreu em outubro de 2015, com 62 anos, vítima de cancro do ovário. A doente considerava que o aparecimento do cancro se deveu ao uso de pó de talco da Johnson & Johnson durante 35 anos. O júri do estado americano do Missouri concordou e ordenou à empresa que pagasse uma indemnização de 72 milhões de dólares (cerca de 65 milhões de euros). Mas a comunidade científica ainda não chegou a consenso sobre esta relação causa-efeito.
“A meu ver a decisão do tribunal falha por dois motivos: primeiro, a evidência de uma associação causal entre o uso de pó de talco genital e o risco de cancro do ovário é fraca; segundo, mesmo que a associação fosse real, a força da associação é demasiado fraca para se poder dizer, no balanço das probabilidades, que um cancro que surja numa mulher que use pó de talco é causado por este”, afirma Paul Pharoah, professor de Epidemiologia do Cancro, Universidade de Cambridge (Reino Unido).
O investigador britânico refere que já existem estudos que pretendem estabelecer uma associação entre o uso de pó de talco e o cancro do ovário, referindo-se mesmo um aumento do risco em 20% nos casos das mulheres que usam pó de talco na zona perienal. “A associação biológica é plausível”, diz o investigador, mas refere que por enquanto os estudos ainda apresentam algum enviesamento.
“Houve um estudo epidemiológico que revelou que o talco é um fator de risco para o cancro”, diz ao Observador Daniel Pereira da Silva, presidente do Grupo Português de Estudos do Cancro do Ovário. “Mas ser fator de risco não quer dizer que provoque [cancro]”, alertou. “Não conheço nenhum trabalho que demonstre uma relação de causa-efeito entre o talco e o cancro do ovário.”
“Acho que é mais provável do que improvável que haja uma associação entre a utilização genital do pó de talco e o risco para certos tipos de cancro do ovário, mas é preciso lembrar a dimensão desse risco”, conclui Paul Pharoah. O investigador dá um exemplo: uma mulher de 20 anos no Reino Unido tem uma probabilidade de 18 em 1.000 de vir a ter cancro do ovário, em qualquer momento da sua vida. Se for real este aumento de 20% no risco, a probabilidade de ter cancro no ovário sobe para 22 em 1.000. “[Comparativamente] uma mulher com um problema no gene BRCA1 tem um risco de vir a ter cancro no ovário de 400 em 1.000.”
Como evitar o cancro do ovário?
Existem vários tipos de cancro do ovário, sendo os mais comuns os cancros epiteliais – 75% dos casos -, refere Daniel Pereira da Silva. É provável que a ovulação tenha um papel central no aparecimento do cancro do ovário, mas a verdade é que ainda se sabe muito pouco sobre estes cancros e a sua origem.
“Os cancros do ovário são muito agressivos, com uma elevada taxa de mortalidade, mas são muito raros”, diz ao Observador Fernanda Águas, presidente da Sociedade Portuguesa de Ginecologia. O maior problema é que ainda não existe um rastreio para estes tipos de cancro e os sintomas não são específicos. Quando é detetado, normalmente já é muito tarde para uma intervenção.
Existem alguns fatores de proteção conhecidos para os cancros do ovário, como a pílula contracetiva, a gravidez ou o aleitamento, indica Paul Pharoah. Os fatores de risco podem estar associados à terapia hormonal de substituição, ao excesso de peso e a casos de endometriose (quando o tecido do interior do útero cresce noutras partes do corpo), refere o investigador. “Fumar está associado a um dos mais raros tipos de cancro do ovário – cancro do ovário mucinoso.”
Outro fator de risco importante são as mutações nos genes BRCA1 e BRCA2 – os genes mais estudados em relação ao cancro da mama. “Há que ter particular atenção quando há casos na família, o que pode justificar medidas específicas”, refere Daniel Pereira da Silva.
O pó de talco, o amianto e o cancro do ovário
O pó de talco é feito de talco, um mineral composto por magnésio, sílica e oxigénio que absorve a humidade. Na sua forma natural, algum talco contém amianto, um carcinogénico conhecido, mas todos os produtos comerciais vendidos nos Estados Unidos estão livres de amianto desde os anos 1970, refere a Sociedade Americana do Cancro.
Numa tentativa de verificar se existe uma relação entre o pó de talco, e em particular o amianto, e o cancro do ovário, a equipa de Alison Reid, investigadora na Universidade da Austrália Ocidental, compilou os estudos publicados entre 1950 e 2008. No artigo publicado em 2011, na revista Cancer Epidemiology, Biomarkers & Prevention, os autores concluem que não existe prova científica de que o amianto seja uma causa de cancro do ovário.
Em relação à associação entre a exposição ocupacional ao amianto e o cancro do estômago, existe um aumento moderado do risco, como refere o artigo publicado em 2015 na revista British Journal of Cancer. Já o risco de cancro do pulmão por exposição à inalação, no caso dos mineiros e das pessoas envolvidas no fabrico do pó, está mais bem demonstrada, refere a Sociedade Americana do Cancro. Contudo, a utilização de pó de talco por motivos cosméticos não foi associada a cancro do pulmão.
O Cancer Research UK acrescenta ainda que não há evidência científica que o pó de talco que é usado nos contracetivos, como os preservativos, aumente o risco de cancro dos ovários – e aqui o pó de talco está muito mais próximo dos ovários da mulher do que se fosse aplicado na região perineal.
Ainda assim, Daniel Cramer, epidemiologista na Universidade de Harvard, defende, desde 1982, que a exposição ao pó de talco aumenta o risco de cancro do ovário. Este investigador foi o consultor científico pago no caso contra a Johnson & Johnson, refere a Reuters. Mas os estudos em que são identificados os casos de doença e encontrados os fatores em comum, e nos quais o investigador se baseou, são muito suscetíveis ao enviesamento – é fácil que as doentes já não se consigam lembrar bem de quando e como usaram a substância (neste caso o pó de talco).
Apesar dos estudos científicos pouco conclusivos e em alguns casos quase contraditórios, a Agência Internacional para a Investigação em Cancro, da Organização Mundial de Saúde incluiu o “uso de pó de talco na região perineal” no grupo 2B, o grupo das substâncias “possivelmente carcinogénicas para humanos”. O pó de talco não é um produto de primeira necessidade, portanto quem tem dúvidas ou preocupações não o deve usar, diz, citada pela Reuters, Ranit Mishori, professora de Medicina Familiar na Universidade de Georgetown.