Aumento do abono de família, alargamento da Tarifa Social de Energia para os mais carenciados, um novo apoio aos desempregados de longa duração, uma redução do IMI e até a possibilidade de vir a ter uma redução no IRS, ainda que pequena, com a inclusão de despesas no veterinário. De um total de quase 240 propostas de alteração apresentadas, 135 foram aprovadas e muito mudou face ao documento original. O Orçamento do Estado para 2016 é aprovado esta quarta-feira, seguindo depois para Belém, para Marcelo promulgar.

Depois de intensas negociações com Bruxelas, o Governo apresentou à Assembleia da República um orçamento mais restritivo do que gostaria, com mais aumentos de impostos e com menos medidas de estímulo à economia. Os partidos que fizeram acordo com o PS – Bloco de Esquerda, PCP e Os Verdes – anunciaram desde logo que iriam tentar fazer do documento na especialidade um “orçamento melhor”. Fizeram?

Na sua ótica sim, mas foi preciso ginástica e mudar algumas vírgulas ou formulações em troca de um ‘sim’. Certo é que, três dias de votações intensivas serviram para mostrar uma maioria de esquerda coordenada, com o Bloco de Esquerda mais alinhado com o PS do que o PCP, que saía da linha mais vezes. Só por uma ou duas vezes a esquerda saiu do trilho e descarrilou. Nesses casos, valeu aos socialistas a regra de ouro do PSD, que disse desde o início que votava contra todas as propostas do Governo e se abstinha em todas as propostas de alteração. Pois se Maomé não vai à montanha, vai a montanha a Maomé.

As novas combinações de votos. BE com mais vitórias, PSD forçado a dar a mão

O momento mais sonante da desafinação da “geringonça” foi a votação sobre os compromissos internacionais, assinados pelo anterior Governo, sobre as ajudas financeiras a dar à Grécia e as ajudas a dar à Turquia no âmbito do mecanismo de apoio à crise dos refugiados. Com o PCP e o BE a manterem-se contra estes compromissos, e com o PSD a manter-se firme na promessa de votar contra todos os artigos do OE, os socialistas tiveram de ser criativos para forçar o PSD a viabilizar a transferência de verbas. Para isso apresentaram uma alteração cirúrgica às duas normas, indo desta forma ao encontro da abstenção dos sociais-democratas – que tinham definido que se abstinham em todas as propostas de alteração. Foi o suficiente para o Governo evitar um confronto com os partidos da esquerda num assunto onde as posições são nitidamente divergentes, e ver mesmo assim as verbas aprovadas.

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Mas houve mais neste mundo novo das “novas combinações” parlamentares, como referiu Ferro Rodrigues – incluindo dois empates. Coisa rara em votações plenárias, mas numa altura em que o Parlamento está totalmente dividido em dois blocos, tudo é possível. O primeiro caso ocorreu quando PCP e Verdes desalinharam da maioria de esquerda e chumbaram a intenção do Governo de obrigar as autarquias a utilizarem o dinheiro poupado com os cortes salariais para reduzir o endividamento. Com o PCP e o PEV a votarem contra, ao lado do PSD; com o PS, BE e PAN a votarem a favor, e com o CDS a abster-se, foi preciso o deputado Duarte Pacheco (que domina como poucos a aritmética parlamentar) ajudar Ferro Rodrigues a fazer as contas: 106 deputados de um lado, 106 do outro. A votação repetiu-se e, ao segundo empate, veio o chumbo – assim ditam as regras.

Episódio semelhante viria a repetir-se esta terça-feira, durante a votação de uma alínea do Orçamento que determinava que os apoios à produção cinematográfica tivessem de respeitar as regras europeias para o auxílio estatal. Com a esquerda desalinhada, baralhou-se a matemática e a alínea acabou chumbada depois de dois empates consecutivos.

No total, para além dos 188 artigos do Orçamento do Estado original, foram aprovadas 135 propostas de alteração dos vários partidos. Quem somou mais vitórias foi, naturalmente o Partido Socialista, que fez aprovar todas as suas 80 propostas de alteração. Mas logo de seguida veio o Bloco de Esquerda, que conseguiu fazer aprovar 24 dos seus 49 contributos adicionais, e depois o PCP, com apenas 12 (de um total de cerca de 30 propostas que tinha apresentado). Os Verdes aprovaram sete, e o PAN surpreendentemente conseguiu ver incluídos no documento final seis dos seus contributos.

Também o CDS-PP, que por várias vezes votou ao lado da esquerda, conseguiu fazer aprovar quatro das suas propostas. O PSD foi o único que se manteve à margem, fazendo valer a regra que deixou clara desde o início: não apresentar propostas de alteração, votar contra todas as propostas iniciais do Governo e abster-se em todas as propostas de alteração. A exceção veio dos deputados sociais-democratas eleitos pelo círculo da Madeira, que apresentaram algumas alterações (com a bênção do partido, por se tratarem apenas de propostas para repor a lei), conseguindo aprovar duas delas.

As mudanças e as bandeiras da esquerda que entraram no Orçamento

Dos filhos que dão desconto no IMI aos cães e gatos que dão desconto no IRS, passando pelos manuais escolares gratuitos, o apoio aos desempregados de longa duração, ou a promessa sobre a revisão dos recibos verdes, várias foram as bandeiras do PCP, BE e até Verdes e PAN que a esquerda conseguiu ver incluídas no Orçamento depois de muito jogo de cintura.

Entre as 135 alterações aprovadas, é certo que algumas não passavam de correções, outras limitam-se a ser promessas reforçadas sobre mudanças a fazer no futuro, mas também há muitas mudanças substantivas. Eis algumas delas:

  • Tarifa Social da Energia alargada a, potencialmente, mais 900 mil famílias em situação economicamente desfavorecida. A proposta do Bloco de Esquerda aprovada passa por tornar automáticos os descontos na fatura da eletricidade para quem tenha apoios sociais, como o complemento solidário para idosos, o rendimento social de inserção e outros.
  • Contribuição para o audiovisual desce para as famílias carenciadas, sobe para as restantes. As famílias em situação de mais grave vulnerabilidade económica, que tenham direito à tarifa social, vão ver baixar a contribuição para o audiovisual, paga na fatura da eletricidade todos os meses, dos atuais 2,65 euros para 1 euro. Para compensar esta redução, todos os outros consumidores terão de pagar mais 20 cêntimos na sua fatura, ou seja, 2,85 euros. Com o IVA, a taxa a pagar ultrapassará os 3 euros mensais. Esta proposta também é do Bloco de Esquerda.
  • A taxa máxima do IMI que pode ser cobrada pelas autarquias é reduzida no próximo ano (que se refletirá no imposto a pagar em 2018) de 0,5% para 0,45% – uma proposta do PCP, que até teve o acolhimento do CDS. Os filhos também vão passar a dar desconto no IMI, independentemente do valor da casa. A medida proposta pelo BE dita que quem tem um dependente a cargo terá um desconto fixo de 20 euros; quem tem dois filhos terá um desconto de 40 euros e quem tem três ou mais beneficiará de um abatimento de 70 euros no imposto sobre imóveis.
  • Ainda no IMI, desta vez pela mão do partido ecologista Os Verdes, as famílias com baixos rendimentos vão poder ter isenção mesmo que tenham dívidas fiscais, e os idosos que residam em lares de terceira idade deixam de perder a isenção do imposto, o que acontecia porque tinham de mudar a sua morada para a nova morada.
  • Fim da obrigatoriedade de pagar o subsídio de Natal em duodécimos no setor público. Proposta do PS foi aprovada, mas com o Ministério das Finanças a esclarecer mais tarde que a opção pelo pagamento do 13.º mês por inteiro apenas se aplica aos trabalhadores das empresas públicas que permitam essa opção, quer seja por contrato de trabalho ou regulamentação coletiva.
  • Atualização em 2017 do valor do Indexante dos Apoios Sociais (IAS), que serve de base ao cálculo de muitas prestações sociais. Proposta do PS faz com que prestações sociais aumentem pela primeira vez depois de oito anos em que a atualização esteve suspensa.
  • Manutenção do prazo de 12 anos para que as pequenas e médias empresas reportem prejuízos fiscais apurados, enquanto as restantes empresas ficam com cinco anos para o fazer. Proposta foi do PS. Mas também o CDS conseguiu aqui aprovar uma proposta de alteração que fará com que os empresários em nome individual, identificados como trabalhadores independentes no IRS, possam reportar os prejuízos fiscais nos 12 anos seguintes.
  • No IRS, uma das principais alterações foi a eliminação do regime de quociente familiar introduzido pelo anterior Governo. Em substituição, PS, PCP e BE aprovaram uma dedução fixa de 600 euros por filho em sede de IRS. O quociente familiar era uma grande bandeira do PSD e CDS, que entrou em vigor em 2015, e que agora foi revertido.
  • O abono de família irá subir 0,5% no segundo e terceiro escalão, e o abono das crianças e jovens com deficiência terá uma bonificação de 3%, depois de aprovada uma proposta do BE.
  • Transportes vão voltar a ser gratuitos para os trabalhadores das empresas de transportes e para mais um conjunto alargado de funcionários do Estado que tinham direito a este bónus e que viram a benesse retirada. Proposta também foi do BE.
  • Renovação automática do Rendimento Social de Inserção (RSI) ao fim do período de atribuição de 12 meses. Bloco de Esquerda conseguiu ainda ver aumentar o valor de referência do complemento solidário para idosos em 37 euros, colocando estes idosos acima do limiar da pobreza.
  • Outra bandeira do BE: as vítimas de violência doméstica vão ficar isentas de custas judiciais para eliminar os constrangimentos financeiros que possam sentir antes de apresentarem queixa.
  • O regime de contribuição dos trabalhadores independentes (os chamados recibos verdes) vai ser revisto nos próximos seis meses (com efeitos a partir de 2017). A proposta era do BE, mas também aqui o PCP conseguiu levar a sua adiante: base de cálculo das contribuições para a Segurança Social dos trabalhadores independentes vai ser revista, passando a ser calculadas com base nos rendimentos reais efetivamente auferidos pelos contribuintes.
  • Gratuitidade dos manuais escolares para todas as crianças do 1º ano já a partir de setembro. Era uma das principais bandeiras do PCP e foi avante: todas as crianças do primeiro ano do primeiro ciclo do ensino básico a partir do próximo ano letivo vão ter manuais gratuitos, sendo que vai ainda ser criado um grupo de trabalho para definir um programa de aquisição e reutilização dos manuais escolares para a sua gratuitidade em toda a escolaridade obrigatória.
  • Em relação às propinas, o PCP conseguiu impedir as propinas de aumentarem no próximo ano letivo, mas não conseguiu que o valor descesse já.
  • Criação de uma prestação extraordinária de apoio a desempregados de longa duração que já não recebam subsídio social de desemprego. Era também uma bandeira do PCP, e vai funcionar por um período de 180 dias, através da concessão mensal de um valor igual a 80% do montante do último subsídio social de desemprego pago.
  • O PAN conseguiu fazer valer algumas das suas bandeiras, apesar de ter apenas um deputado. Entre elas está a proposta que passa pela contabilização das despesas com veterinários nas deduções em sede de IRS. Para quem tem animais de estimação fique a saber que o IVA das despesas veterinárias vai passar a poder ser deduzido em sede de IRS, até ao limite de 250 euros, tal como já acontece com as despesas com restaurantes e cabeleireiros.
  • Outra das vitórias do PAN foi introduzir alguns produtos na lista da taxa reduzida do IVA, passando de 23% para 6%: é o caso dos copos menstruais, das bebidas compostas de cereais, amêndoa, caju e avelã sem teor alcoólico, dos produtos como seitan, tofu, tempeh e soja texturizada. Assim como, em sentido contrário, foi retirada da lista I da taxa reduzida do IVA a criação de aves canoras, ornamentais e de fantasia, e a criação de animais para obter peles. O objetivo é que o Governo não compactue, através da baixa do imposto, com a prática deste tipo de atividades.