Conheça alguns dos poemas escritos pelo novo ministro da Cultura, o embaixador Luís Filipe Castro Mendes, que até 14 de abril – dia em que tomará posse – representa Portugal junto do Conselho da Europa, em Estrasburgo. São do penúltimo livro que escreveu,”Lendas da Índia”, publicado pela Dom Quixote, em 2011, e que foi distinguido com o Prémio António Quadros no ano seguinte, pela Fundação com o mesmo nome.
Cavalos da Arábia
Aqui chegavam os cavalos da Arábia,
sempre prontos para cavalgar os desertos
e enfrentar as espadas:
e aqui eram trocados por especiarias,
essas que aos homens do deserto
faziam tanta falta para conhecerem
o sabor do paraíso.
Assim se passavam as coisas,
ou assim as contaram nos livros
em que as lemos e acreditámos.
Foi antes de nós chegarmos. Os cavalos
olhavam para esta terra com a mesma maravilha,
mas sem o nosso terror.
Mas que fazer,
se para nós é do terror a maravilha?
Ainda a poesia
A poesia não é feita por um nem por todos,
nem esteve nunca na rua.
A poesia está na aspereza das coisas contra nós,
tão mais nítidas ao nosso olhar isento
quanto mais doem no coração silencioso.
A Camilo Pessanha, passando em Jaipur
Uma imagem a passar pela retina
e nada mais: venham outros falar-nos de experiência,
de transformar o vivido em consciência,
de reter o que é fugaz!
Uma imagem a passar pela retina,
porque o sentido de tudo está na velocidade do carro
que me permitiu fotografar…
Pessoana pobre
Como nas ruas de Roma
ou no caos de Deli,
esta ruína que assoma
diz que não somos daqui.
Passado, terra estrangeira:
e o nosso em particular
é palavra derradeira,
não se pode articular.
Toda a memória que fui
longe de mim se escondeu.
E de muitos céus azuis
se fez noite neste céu.
A religião do meu tempo
Sim, meus caros, é mágoa, é desalento
e se uma leitora ao menos der por isso
vale a pena fingir
o que deveras sente.
Os toldos vermelhos fecharam-se nas praias.
Faltam homens sem qualidades.
Já todos entendemos
que um tempo acabou.
Acabou o seu tempo,
diz-me o psicanalista, lá nos anos 70,
a acordar num bocejo e a olhar para o relógio.
Os argonautas
Bichos da terra tão pequenos,
esgravatando à roda do mundo,
atarantados, sem rumo:
só e apenas isso,
agora e em todos os tempos.
Glosa a uns versos de Nemésio
Se com quase quarenta anos mal começa,
ovo de tanta coisa, o coração,
que direi hoje, com quase sessenta anos?
Que névoa fria cerca agora o coração
e que voz de dentro resiste a essa névoa,
pois o amor não pára enquanto continuar
o mundo?
Abre os olhos, meu amor:
o mundo é vasto e diverso e brilha
por entre a névoa mais densa.
Os ghats
Antes da pira
limpam os pés do corpo no rio sagrado,
antes mesmo de chegarem os padres, os familiares, os amigos.
Só vemos aqui o povo e os intocáveis (diz-se dalits, my friend)
encarregados de manejar a morte.
Vi num documentário um desses : «Ninguém mais pode tocar
[nos mortos»
dizia com orgulho o sem-casta. «Mesmo que seja o Primeiro
[Ministro.
Só nós podemos preparar os mortos para o seu final.»
Eles não têm medo de olhar os mortos.
Apenas têm quem cuide deles,
quem prepare a lenha, a amontoe,
quem embrulhe o corpo nos panos,
o limpe nas águas sagradas
e ofereça ao filho mais velho a tocha para acender a pira.
O traidor
Tomaste o chá de folhas negras da melancolia?
Porque fugiste às palavras que te deixaram?
Espera-te o mais amargo fruto e depois vão-te sorrir.
E tu? Porque não disseste simplesmente quem eras?
Sabes que é tarde e já nada podemos fazer.
Como um médico na sala de operações, a tua alma encolhe os ombros,
porque tu renunciaste às palavras
e escolheste o silêncio das convicções.
Lendo traduções de poemas antigos
(traduções de poemas sânscritos)
Que ficará das palavras
que tantos escreveram sobre a terra?
Às vezes, num velho mosteiro, aparece um rolo
manuscrito e os poemas sânscritos são tão vivos, maliciosos,
e ao mesmo tempo tão obedientes às fórmulas e às metáforas
consagradas,
como os poemas helenísticos da Antologia Palatina.
Um mesmo espírito liga esses gregos romanizados
aos hindus decadentes e fesceninos que tais versos escreveram
no oitavo século já da nossa era.
Os corpos reinam: próximos, confundem-se
numa aproximação eterna de tão efémera
e assumidamente mortal. Eram assim os deuses, dizes?
Algum dia saberemos?
Além de “Lendas da Índia”, Luís Filipe Castro Mendes publicou, em 1985, “Seis Elegias e Outros Poemas”, que foi distinguido com o Prémio da Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto. Em 1991, publica “Ilha dos Mortos” e dois anos depois de “Viagem de Inverno”. Em 1994, publica “O Jogo de Fazer Versos”, dois anos depois o “Modos de Música”, em 1998, “Outras Canções”, em 1999 “Poesia Reunida” e “Os Dias Inventados”, em 2001. EM 2016, a Assírio & Alvim publicou “Outro Ulisses Regressa a Casa”.