É um “novo tempo político”, como escreve António Costa na moção com que se recandidatou a secretário-geral do PS. Pouco mais de seis meses depois de o PS ter assinado o acordo parlamentar com BE, PCP e PEV que lhe permitiu formar governo, os socialistas reúnem pela primeira vez o órgão máximo do partido para concertar a estratégia para os próximos anos. E as circunstâncias são muito diferentes das que marcaram o último encontro socialista, no início de novembro de 2014: o PS está no Governo, Sócrates já não está preso e António Costa protagonizou o acordo histórico da esquerda portuguesa.
Os trabalhos começam esta sexta-feira ao fim do dia, e à noite António Costa fará uma intervenção dedicada ao passado, aguardando-se críticas aos partidos da anterior coligação governamental: PSD e CDS. Mas também se espera que sirva para o elogio à solução de apoio ao Governo que se seguiu: a geringonça. Na sala, nestes dia, Costa vai contar com poucos críticos — pelo menos dos que atacam a geringonça a viva voz — e, em princípio, só contará com um ex-líder do PS: Ferro Rodrigues. Todos foram convidados, por carta, há mais de um mês, diz fonte da organização do congresso. Sócrates respondeu que não poderá estar presente por ter outros compromissos. Mário Soares recebeu a visita de Costa, na semana passada, e também não estará presente. António Guterres, Jorge Sampaio, Vítor Constâncio e António José Seguro não responderam.
Mas do que serão feitos estes dias de encontro dos socialistas?
Os críticos: tirar senha para falar
Nas últimas semanas posicionaram-se duas vozes críticas que prometiam querer fazer ouvir-se no púlpito do congresso socialista. Sérgio Sousa Pinto e Francisco Assis são críticos da atual solução governativa e vieram inclusivamente avisar que esperavam que as suas intervenções não fossem remetidas para horas tardias — no último congresso, Assis abandonou a FIL zangado por considerar que o seu discurso tinha sido empurrado para uma hora pouco mediática. Nessa altura, as intervenções dos delegados ao congresso eram geridas conforme a importância que tinham no partido e colocadas nas horas com maior visibilidade, mas desta vez a organização inovou.
Vai existir um sistema de senhas para os delegados que queiram falar no congresso. É atribuído um número, por ordem de chegada, a quem quiser intervir no congresso e depois, durante cada discurso, um painel gigante vai mostrar os três oradores seguintes e o respetivo número da senha. “Transparência”, ou “não há militantes mais importantes que outros”, argumenta a organização do congresso que rejeita que a mudança de regras tenha sido feita com a intenção de responder às críticas das tais vozes críticas. Mas mantém-se o privilégio do secretário-geral de poder convidar pessoas para falar no congresso, fora deste sistema de senhas.
O certo é que a inovação veio, de forma hábil, contornar polémicas sobre a gestão do acesso ao púlpito, ou pelo menos a direção lava as mãos dessa questão, ao passar a responsabilidade de inscrição para os delegados, sejam eles da primeira ou da terceira linha do partido. No final de todas as mudanças, a dúvida inicial acaba por se manter: vão os críticos da geringonça ter a palavra a horas mediáticas?
A geringonça: uma no cravo outra na ferradura
É o congresso da “geringonça”. Se no último congresso do PS, também na FIL, em Lisboa, António Costa abria a porta a este cenário do PS aliado à esquerda — rejeitando a expressão “partidos do arco da governação” –, agora, quase dois anos depois, dá-se a consumação. “Quando se fizer a história desta experiência governativa haverá também que fazer justiça à capacidade que o PS teve, no seu último congresso, de antecipar a necessidade dessa mudança”, escrevia Costa na moção com que se apresenta ao congresso. O elogio ao seu filho político preferido, o acordo da esquerda, vai ser uma constante no líder e na direção socialista.
“O PS teve à sua esquerda três partidos que manifestaram, no rescaldo das eleições de outubro de 2015, um enorme sentido de responsabilidade e uma grande capacidade de separar o essencial do acessório”, continua a ler-se na moção do líder socialista, que elogia BE, PCP e Verdes por terem ajudado o PS a formar um governo “com solidez” e com “um horizonte de estabilidade superior à de qualquer dos governos minoritários” que já existiram em Portugal.
É unânime que a chamada “geringonça” se veio a confirmar mais estável e duradoura do que muitos antecipariam à partida. Mas os congressos são também os momentos-chave para os partidos falarem às bases e ao seu eleitorado, tendo por isso que se distanciar dos restantes, sobretudo quando há uma batalha eleitoral no horizonte (já lá vamos no ponto seguinte). É este equilíbrio que se vai assistir no palco da FIL este fim de semana, com o líder do PS consciente de que parte do partido e do eleitorado está apenas conformado — e não arrebatado — com a ideia da aliança à esquerda. Também terá de falar para estes socialistas. Começou por fazê-lo, de resto, no texto da moção, onde a direção socialista nega que tenha havido uma “subversão radical do sistema de governo” e onde garante que o PS não está “refém” dos partidos à sua esquerda — nem tão pouco “manietado” ou “paralisado”.
Explicar o porquê de ter feito o que fez e como tenciona manter a “geringonça” em andamento sem desvirtuar os princípios socialistas democráticos será pois um dos desafios da direção do PS no congresso deste fim de semana. Bloco e PCP também terão oportunidade de o fazer. No final de junho o Bloco de Esquerda reúne-se a convenção nacional e em dezembro é a vez do PCP de reunir o seu congresso.
As autárquicas: mini-geringonças locais?
2017 é ano de eleições autárquicas e, como tal, é um tema incontornável neste congresso. E um tema sensível. O objetivo do PS para as autárquicas não podia ser outro: “renovar a maioria nos municípios e nas juntas de freguesia” para manter a presidência da Associação Nacional de Municípios (ANMP) e da Associação Nacional de Freguesias (ANAFRE) e “consolidar” dessa maneira aquilo que o partido conseguiu em 2013 — mas a fasquia é alta, porque esse ano o PS conseguiu o seu melhor número de câmaras de sempre: 150. Agora os tempos são outros e, numa altura em que PS e PCP (partido com forte presença autárquica) têm uma aliança nacional, o que vai acontecer ao nível local: poderá haver acordos também?
Costa já deixou claro no texto da moção que está aberto a “plataformas de diálogo com outras forças políticas, cidadãos independentes e movimentos de cidadãos visando a procura das soluções de governação local que melhor sirvam as populações”. Esta semana o jornal Público escrevia que PS e PCP tinham estabelecido uma espécie de “pacto de não-agressão” para as autárquicas, informação que foi depois desmentida pela secretária-geral-adjunta Ana Catarina Mendes, que afirmou em entrevista à Antena 1 que “não há nenhum pacto de não-agressão com PCP nas eleições autárquicas”, nem qualquer hipótese criar coligações pré-eleitorais com o PCP ou Bloco de Esquerda. Em entrevista ao Observador, Augusto Santos Silva avisa que o PS “não deve esquecer na campanha que tem um acordo com PCP e BE”, dizendo que as coligações de esquerda a nível local dependem “caso a acaso” e da o exemplo de Braga como uma autarquia onde podia existir esse encontro. Mas o ministro e dirigente socialista também diz que do resultado dessas eleições não deve haver uma leitura nacional. O presidente do partido, Carlos César, também já afastou esta possibilidade.
Certo é que as eleições autárquicas, tanto à esquerda como à direita, estão a ser vistas como um momento importante de teste ao novo quadro político. Em declarações ao Observador, o Presidente da República disse na semana passada que não achava que o Governo fosse “cair” por causa das autárquicas, e que tanto Costa como Passos Coelho eram “duros e resistentes”, logo, inquebráveis nas eleições intercalares. Mas o tema é, no mínimo sensível, já que as eleições autárquicas são aquelas que mais mexem com as bases e com a estrutura dos partidos. E não vai, por isso, passar em branco no congresso.
A Europa: criticar mas com cabeça
A sombra da Europa é vista como um dos obstáculos à sobrevivência do Governo, já que BE e PCP são assumidamente contra os compromissos internacionais e o Tratado Orçamental. Neste capítulo, o PS puxa os galões de ser historicamente “o partido mais europeísta” do espetro partidário e é por isso que a gestão do dossiê tem de ser feita com pinças. Na moção com que se apresenta ao congresso, o líder do PS puxa a brasa à sua sardinha e garante que o Executivo “rompeu com a atitude subserviente do Governo anterior e tem-se batido, por vezes em condições muito difíceis, pela defesa dos interesses de Portugal em Bruxelas”. Não é uma “atitude de confronto com as instituições europeias” — para se distinguir dos gregos –, mas sim uma escolha entre a “obediência e a subserviência”.
Há muito que o PS de António Costa pede uma “leitura inteligente” do tratado orçamental e diz que sem mudanças na Europa não haverá mudança de políticas em Portugal. É o “novo impulso para a convergência”, como lhe chama. PCP e BE têm visto com bons olhos a atitude do Governo de estar a fazer o caminho para a “revisão” de alguns conceitos do tratado orçamental, mas dizem que não chega. “Os conceitos decisivos de ‘crescimento potencial’ e de ‘défice estrutural’ são apenas exemplos de matérias que exigem revisão”, escreveu o líder socialista no texto da moção.
A pairar no congresso socialista estará ainda a questão da aplicação ou não de sanções a Portugal e Espanha pelo não cumprimento da meta do défice em 2015. Esta semana vários dirigentes do PS fizeram intervenções, à boleia de um pedido de consensos do Presidente da Assembleia da República, no sentido de procurar um entendimento alargado contra as sanções — mas esse entendimento, apesar de Passos Coelho e Maria Luís Albuquerque até já terem feito lóbi junto da Comissão para Portugal não ser castigado, está longe de acontecer.
Eutanásia, drogas leves e prostituição: discutir, mas pouco
Despenalização da eutanásia, despenalização da produção, venda e consumo de drogas leves e regulamentação da prostituição como profissão legal: entre as 10 moções setoriais que vão ser apresentadas ao congresso do PS, três são sobre temas fraturantes.
De acordo com os tempos estabelecidos para o conclave, as dez moções terão de ser arrumadas em apenas 45 minutos do último dia de trabalhos. Ou seja, só haverá tempo para serem apresentadas, mas não para serem discutidas, nem tão pouco votadas. Essa discussão e votação será feita depois na Comissão Nacional do partido, órgão máximo entre congressos. Só nessa altura o PS poderá vincar uma posição sobre estes temas.
Também há um espaço previsto para a discussão de alterações aos estatutos do partido (Costa não faz qualquer proposta para mexer nas regras de funcionamento interno, ao contrário do que aconteceu no último congresso), mas as decisões serão remetidas para a próxima reunião da Comissão Nacional do partido.
Seguristas: à beira da extinção?
Vem no final, mas na verdade é um dos pontos centrais na cabeça dos delegados ao congresso. Como fica a distribuição de lugares nos órgãos de direção? No domingo de manhã votam-se as listas aos órgãos nacionais, onde o debate e a decisão política vai ter lugar nos dois próximos anos. É sempre um momento e gestão de sensibilidades, para quem faz a lista melhor colocada para vencer. Neste congresso, a disputa é feita entre a lista à Comissão Nacional (o órgão máximo do partido entre congressos) de António Costa e a do único concorrente à liderança do partido, Daniel Adrião. Portanto, a pressão para integrar críticos recai sobre o líder. Os que eram mais próximos do anterior secretário-geral, António José Seguro, a alimentam a expectativa de ver representada nos órgãos a minoria que representam no PS.
Este segurismo já não tem António José Seguro, que tem estado afastado da atividade política desde a disputa intensa (que perdeu) contra António Costa, em 2014. Nessa altura deixou o cargo de secretário-geral e, no PS, deixou alguns dos seus mais próximos, caso de Álvaro Beleza (que vai estar no congresso) e de António Galamba (que não vai estar), um dos críticos mais ferozes de António Costa. A crítica tem-se mantido, mas não foi suficiente para obstaculizar a solução governativa com que esta ala não concordava, tendo até pedido a cabeça de Costa no pós-eleições. Tem representação no grupo parlamentar, mas não está alinhada como um bloco de oposição interna, o que se percebeu logo no arranque da sessão legislativa, quando não se opôs à indicação de Ferro Rodrigues para a presidência da Assembleia da República.
Maria de Belém, a candidata presidencial que a ala segurista preferiu nas últimas eleições, vai ter um lugar na comissão de honra deste congresso, bem como Manuel Alegre, de acordo com o que foi divulgado pela agência Lusa. Na presidência vai manter-se Carlos César, o único candidato ao cargo, sendo eleito já nesta sexta-feira.