Não é que seja uma competição. Num festival de música, nem as bandas andam a tentar bater-se umas às outras, nem as conclusões podem ser matemáticas quando o que está em jogo também são emoções. Mas, inevitavelmente, há momentos que ficam gravados na memória e que tocam de forma mais especial. No primeiro dia do NOS Primavera Sound os cabeças de cartaz foram os Sigur Rós e, apesar de se terem apresentado em número reduzido, foram eles que tocaram mais alto.

Quando revelaram as datas da nova digressão, os islandeses prometeram novas músicas, um novo espetáculo e “talvez outras novidades”. O multi-instrumentista Kjartan Sveinsson tinha acabado de anunciar a saída da banda, deixando-a reduzida a três elementos. Mal pisaram o palco NOS esta quinta-feira, às 22h20, o público soube logo que, a haver novidades, estas não passariam por novos membros.

As silhuetas de Jónsi, do baixista Georg Holm e do baterista Orri Pall surgiram tapadas por uma espécie de grade. E no primeiro minuto cumpriram todas as promessas de uma vez, ao desvendarem um espetáculo visual raro de se ver num festival e ao arrancarem com “Óveður”, canção que não se encontra em nenhum dos seus sete discos de estúdio. A bateria eletrónica estava tão alta que os graves vibravam nos corpos… Espera, bateria eletrónica? Ora aqui está a primeira novidade.

A segunda foi “Starálfur”. A canção do aclamado Ágætis Byrjun, de 1999, surgiu aqui tão minimalista quanto bruta — dá para imaginá-la despida da melodia suave e com laivos bélicos? Foi mais ou menos isto que se ouviu no Porto, o que levou alguns fãs a entreolharem-se, como quem diz: “Será que vão ser todas assim?”.

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A resposta chegou à terceira música, “Sæglópur”. Jónsi pegou na viola e no arco, Georg agarrou no baixo, Orri sentou-se na bateria e os três deixaram para trás grades, luzes e a bateria eletrónica. Aquela voz, que não parece ser deste mundo, sobrepunha-se agora aos instrumentos. Enquanto a viagem prosseguia por “Glósóli”, “Vaka” e “Ný Batterí”, parámos para pensar que Jónsi anda há 20 anos a cantar-nos palavras que quase ninguém percebe. E que, mesmo assim, nos consegue prender a atenção. Provocar tantas emoções com uma voz de onde sai um código impenetrável chamado islandês (ou, para piorar mais ainda, hopelandic), é um dom.

Durante alguns momentos houve quem tivesse ouvido o soundcheck que os Parket Courts faziam no palco ao lado, mas a noite não será recordada por isso. Nem pelos festivaleiros que teimam em conversar alto, faltando ao respeito de quem está em frente a um palco para — imagine-se! — ouvir música. Na memória vão ficar, sim, os agudos e o crescendo de “Festival”, a pujança de “Yfirborð” e de “Kveikur”, do mais recente álbum, com o mesmo nome. E o encore com “Popplagið”, a mesma com que os Sigur Rós se despediram na última visita a Portugal, em 2013. Ainda voltaram ao palco uma segunda vez, depois de o baterista se ter despedido com um safanão nos pratos e Jónsi ter deitado abaixo o microfone e atirado a guitarra para o chão. Desta vez o regresso foi só para receberem o maior aplauso da noite. Resta esperar por uma próxima visita.

Não há cerveja no chão, a dourar o meu caminho

À quinta edição do irmão mais novo do Primavera Sound espanhol, a expectativa era alta e, tirando a chuva, que contrariou alguns bons ânimos, pode-se dizer que os melómanos não saíram defraudados. Inserido na rota dos melhores festivais de música da Europa, foi frequente estarmos durante alguns momentos sem ouvir a língua de Camões, já que são muitos os italianos, alemães e, claro, espanhóis, presentes no Porto. O forte contingente estrangeiro tem sido uma constante. No que toca a mudanças, o Palco Pitchfork mudou de sítio: está agora logo à esquerda, com a lateral completamente exposta para a zona de entrada. Por outras palavras, quem sai do recinto não tem como lhe escapar. A eletrónica deixou de estar escondida.

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O Palco Pitchfork agora é uma tentação para quem já vai decidido a sair. © PEDRO ESTEVES/OBSERVADOR

A zona de refeições foi ampliada, há mais bancos disponíveis para quem quer descansar sem ser com o rabo sentado na relva e circula-se melhor, a avaliar por esta quinta-feira, que bateu recordes: 25 mil pessoas fizeram deste o primeiro dia mais concorrido de sempre, dados da organização. Tanta gente concentrada a beber cerveja e copos no chão, nem vê-los. Civismo repentino? Nada disso. Este ano, e à semelhança do que já se faz noutros países europeus, os copos são reutilizáveis. Quer isto dizer que quem quer beber a bebida dourada tem de deixar uma caução de dois euros para os copos mais pequenos e de 3,50 euros para os de meio litro. Como toda a gente quer recuperar o dinheiro, quase não se viu lixo na relva do Parque da Cidade. Uma aposta vencedora.

Voltando aos concertos, vencedora foi também a atuação dos Deerhunter, que às 20h00 subiram ao Palco NOS, à exceção de Bradford Cox, que se fez esperar mais alguns minutos antes de dar voz à primeira música, “Rainwater Cassette Exchange”, onde se pode ouvir o verso “Do you believe in love at first sight?“. Não sabemos se o líder do grupo queria conquistar alguém na plateia mas, a haver um prémio elegância, ele tê-lo-ia vencido, com o seu blazer e camisa azuis, boné na cabeça a condizer com as calças e a gravata a fazer pendant com tudo.

Há três anos, a banda norte-americana esteve ali ao lado, no Palco Super Bock, ainda o festival se chamava Optimus Primavera Sound. Meses depois, Bradford Cox, cujo aspecto magro e frágil se deve ao síndrome de Marfan, sofreu um acidente de carro. As dores e o impacto fizeram com que desenvolvesse depressão. O que se viu esta quinta-feira foi um líder forte, desenvolto, e um grupo coeso, pronto a brindar o público com barulho do bom: rock, distorções, energia, bateria e percussão, mais as teclas, a guitarra, o baixo, um saxofone e tudo o que mais houvesse. Também carregaram no som, que esteve bastante alto.

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Bradford Cox esteve bem disposto. Os Deerhunter deram um dos melhores concertos do dia. © www.hugolima.com

Ouvimos o mais recente disco, Fading Frontier, claro, de que “Living My Life” e “Duplex Plan” são exemplo. Mas também recordámos Monomania (“Dream Captain”, “T.H.M.”), o longínquo Microcastle, de 2008, com a incontornável “Agoraphobia”. E, sobretudo, Halcyon Digest, com o qual chegaram a mais gente e consolidaram o percurso. Escusado será dizer que “Revival”, “Helicopter” e “Desire Lines” foram dançadas e cantadas como até essa hora não se tinha ainda dançado nem cantado no Parque da Cidade. Mesmo que Bradford Cox continuasse a agradecer ao público com “gracias”.

Depois da tareia sonora dos Deerhunter, o concerto de Júlia Holter, às 21h10, serviu para descansar a audição, no Palco Super Bock, o primeiro a ter entrado em ação nesta quinta edição, com a atuação, horas antes, dos portugueses Sensible Soccers — teriam beneficiado de uma hora mais tardia, já que estava pouca gente e os que estavam preferiram sentar-se na relva. No mesmo palco, também os Wild Nothing sofreram com o ambiente morno das 18h50. A certa altura, Jack Tatum anunciou que os cinco iriam tocar de seguida “TV Queen”, for the one person that cares. De facto, mesmo nas filas da frente dançava-se pouco e conversava-se muito.

Antes de se ir embora, Bradford Cox dos Deerhunter fez uma sondagem involuntária:

– “Quem está aqui para ver Animal Collective?
– “Uuhhhh.”
– “E quem está aqui para ver Sigur Rós?
– “Uuuhhhhhhhhhh.”

O bruaá não deixou dúvidas. O Palco NOS fechou perto das 02h30 depois da hiperatividade Animal Collectiveiana. Havia bastante gente que queria ver Noah Lennox, Avey Tare, Geologist e Deakin, os quatro americanos que, juntos, formam um dos projetos mais criativos do século XXI. Mesmo com a chuva, às 01h10 havia muita gente pronta a ouvir o novo disco, Painting With, com a leve esperança de escutar composições mais antigas, sobretudo de Merriweather Post Pavilion.

E escutou-se “Daily Routine”, sim senhora, pela voz de Noah Lennox. O concerto seguiu sem paragens, não há um minuto de silêncio entre canções, de “Golden Gal” a “On Delay”, com jogos vocais entre Noah Lennox e Avey Tare. A certa altura, este último — boné branco e uma camisola com muitos ratos Mickey, para a qual os nossos olhos estavam sempre a fugir — perguntou em português se estava tudo bem, para logo depois lamentar não saber falar mais português. Noah Lennox, a viver há vários anos em Lisboa, manteve-se calado. O público, esse, é que não se manteve ali por muito tempo. Fosse do cansaço, da chuva ou da falta de hinos como “My Girls”, a verdade é que as pessoas foram virando costas, com a multidão a ficar só até ao nível da mesa de som. “Floridada”, outro dos momentos em que dá para tirar mais partido da alternância e complementaridade das vozes de Lennox e Tare, fechou o concerto. Sem direito a encore.

Nos Primavera sound 2016, dia 01, 2016,

Os Sensible Soccers abriram o primeiro dia. Sexta-feira é a vez dos White Haus. MICHAEL M. MATIAS / OBSERVADOR

Esta sexta-feira, dia feriado, o dia vai ser mais duro fisicamente. O Palco Pitchfork vai estar a funcionar a 100%, assim como o novo Palco . (assim mesmo, ponto, cortesia do apoio da Câmara Municipal do Porto), que substitui o ATP. PJ Harvey é a cabeça de cartaz, com Brian Wilson (Beach Boys), Savages, Beach House, Cass McCombs, Dinosaur Jr., Tortoise e Mudhoney, entre muitos outros, a enriquecerem o cartaz. Freddie Gibbs, que foi detido recentemente, não estará presente. A organização não anunciou substituto.

Ao longo do dia atualizamos o nosso liveblog com o ambiente e a música. O mesmo vai acontecer na sexta-feira e no sábado.