Um homem e uma mulher. Passado versus presente. De um lado o sol e a praia, do outro a política e a guerra. Do segundo dia do NOS Primavera Sound cada festivaleiro levará um concerto favorito, quer tenha sido a rudeza das Savages, a pureza grunge dos Mudhoney, o mistério dos Beach House ou a eletrónica de Kiasmos. Mas os dois momentos que sobressaem foram protagonizados por Brian Wilson e por PJ Harvey. E dificilmente podiam estar mais afastados um do outro.
Se em 2015 o nome com maior peso histórico a passar pelo Parque da Cidade do Porto foi Patti Smith, que em dois concertos mostrou que, aos 69 anos, está em grande forma, nesta edição as pessoas que têm uma lista de músicos fundamentais para ver ao vivo pelo menos uma vez na vida puderam riscar o nome de Brian Wilson. O fundador dos Beach Boys está a celebrar os 50 anos do álbum Pet Sounds tocando-o na íntegra. Lançado em 1966, foi considerado, seis anos depois, pela Rolling Stone, “o primeiro álbum conceptual” da história da música.
Com 73 anos, só Deus sabe como é que o californiano está hoje no ativo a tocar a obra-prima que compôs para os Beach Boys. Sabendo-se dos maus tratos do pai, do alcoolismo da mãe, dos problemas com drogas, dos problemas mentais, da clausura e até da manipulação de um psiquiatra contratado para o tratar, vê-lo entrar no palco principal é motivo suficiente para celebrar.
Não é, contudo, razão para ignorar que Brian Wilson já não tem a energia necessária para cantar as canções como elas merecem, nem para tocá-las no piano atrás do qual esteve sentado durante todo o espetáculo. Os 12 músicos que o acompanharam, entre os quais Al Jardine, dos Beach Boys, tinham consigo uma panóplia de instrumentos e faziam as imprescindíveis harmonias vocais. Wilson lá ia anunciando cada canção, com a voz um pouco arrastada: “Esta escrevi em 1961, tinha eu 19 anos”, disse sobre “Surfer Girl”, que juntamente com “California Girls” e “I Get Around” abriram o alinhamento com cheirinho a surf, a sol e a juventude.
O público dançou e celebrou este início. Fez o mesmo no fim, desde que começaram os primeiros acordes de “Good Vibrations” até à despedida com “Fun Fun Fun”, passando por “Barbara Ann” e “Surfin USA”. Foi precisamente durante a interpretação de Pet Sounds que a audiência esfriou, exceções feitas a “Wouldn’t It Be Nice”, claro, e à belíssima “God Only Knows” — “O Paul McCartney gosta muito dela”, explicou Wilson antes de a tocar. A atuação pode não ter sido histórica. Mas deu-se uma lição de história musical ao vivo no Porto.
Quando Pet Sounds foi lançado, ainda faltavam três anos para PJ Harvey nascer. Os seus caminhos cruzaram-se esta sexta-feira, no mesmo palco. E aqui se acabam as comparações: com a autora de “Good Fortune”, o passado e a nostalgia dão lugar à força do presente. Em abril chegou The Hope Six Demolition Project e, apesar dos 28 anos de carreira, não usou o festival para o típico concerto celebração, preferindo mostrar 10 das 11 novas composições — de fora só ficou “Near The Memorials To Vietnam And Lincoln”.
Desde 2009, quando passou pela Casa da Música, que Polly Jean não punha os pés no Porto (deu dois concertos na Aula Magna, em 2011). Desta vez veio com nove músicos, entre eles John Parish e Mick Harvey, ex-Bad Seeds (o apelido comum é pura coincidência). Todos entraram em palco de forma solene, em compasso de bateria, vestidos de preto, assim como ela. De saxofone na mão, vestindo uma minissaia, sem medo da brisa do Atlântico e sem palavras para dar ao público. Os ecrãs também emitem imagem a preto e branco. De “Chain of Keys” até “A Line in the Sand” ou “Orange Monkey”, em todas se pôde constatar a competência da banda e a voz afinada. “Ministry of Defence” endurece o tom, a letra de “Community of Hope” já está na ponta da língua de algumas pessoas. Ninguém arreda pé. Ninguém foge aos temas pesados do Kosovo, do Afeganistão e de Washington para ir recuperar a alegria e a cor de “Surfin USA” a qualquer lado.
Polly Jean passou também por uma série de temas do anterior Let England Shake, ligado ao mais recente disco pela sonoridade e pelos temas políticos. Para além da suave “When Under Ether”, apenas na parte final do concerto passou por canções mais antigas, como “To Bring You My Love”, “Down by the Water” (a certa altura esqueceu-se da letra e riu-se disso com vontade) e a velhinha “50ft Queenie”, que mostrou como de repente nove elementos que tocam de forma orquestral podem transformar-se em grupo rock pesado.
Aqui não há improvisações. O espetáculo foi igual ao do Primavera Sound de Barcelona e as canções escutam-se tal qual estão nos álbuns, com exceção de “To Bring You My Love”, ligeiramente embrutecida. Escutam-se mais e melhor do que em qualquer outro concerto que fez parte dos dois primeiros dias do festival. Única mulher entre os nove colegas, tem sabido comandar e criar com qualidade, parecendo ter uma aura especial nesta fase da carreira: ainda não se tinha feito na plateia silêncio como foi feito em “Dollar dollar”, o que permite ouvir um concerto como deve ser. Abandonámos a solenidade para uma malha rock n’roll das boas, “50ft Queenie”. A britânica aproveita para se passear no palco, puxa por quem tem a guitarra na mão, mas não chega nunca a pegar numa. “River Anacostia” fecha o espetáculo da cabeça de cartaz. E PJ Harvey foi-o sem mácula.
Girl power
As mulheres estiveram em destaque neste segundo dia. Antes, no Palco Super Bock, Jehnny Beth, a locomotiva que propulsiona as Savages, avisou. “Magoei as costas. Vou fazer alguns movimentos mas vou ser cautelosa. Vão ter de dançar por mim.” Essa cautela — mesmo assim, mexeu-se bastante — não amornou o regresso da banda londrina ao Parque da Cidade, três anos depois, com o segundo disco para dar a provar. E elas lembram-se. Tudo acabou em apoteose com “Fuckers” e Jehnny Beth aproveitou para contar uma história. “Foi aqui que tivemos a ideia de ‘Fuckers’. Deram-nos tanto amor que sentimos que tínhamos de dar algo de volta. Esta é uma música para vocês tomarem conta”.
A outra voz feminina que marcou o dia foi a de Victoria Legrand, a metade dos Beach House, a quem coube a tarefa de encerrar o Palco NOS. Uma tarefa que tem sido algo ingrata já que, à semelhança do que aconteceu ontem com Animal Collective, por alguma razão o público foi abandonando sem grande motivo para isso.
O concerto começou oito minutos atrasado. Este tempo pode não parecer relevante mas, num evento que se tem pautado pelo rigoroso cumprimento de horários, só podia ser sinal de que algo de mal se passava. O problema aconteceu no palco ao lado, com Kiasmos. A dupla formada por Ólafur Arnalds e Janus Rasmussen tentou começar o concerto por duas vezes e das duas o som não seguia o seu curso. Só passados mais de 20 minutos é que os islandeses começaram em força a mostrar as músicas do último disco, de 2014. Resultado: concerto mais curto, o que foi uma pena, tal era a qualidade do som e a vontade de dançar dos presentes.
Menção honrosa para os Mudhoney, que no Palco . deram o bom e cru rock a uma audiência que já sabe que, junto a Mark Arm e Steve Turner, não vai encontrar super produções nem as últimas tendências de enfiar sintetizadores em tudo o que é novo álbum. Houve mosh, houve crowdsurfing, houve o reencontro com a essência do rock e com o hino “Touch Me I’m Sick”.
Ao longo do dia, o Observador esteve a fazer atualizações ao minuto sobre o que se estava a passar no festival. E passou-se sobretudo música rock, folk e eletrónica. O que nos faz perguntar: onde pára o hip-hop ou o rap? Há bons projetos alternativos que teriam lugar no cartaz deste festival. Freddie Gibbs não veio e não houve substituição. Para sábado, último dia, há concertos de Air, Explosions in the Sky, Battles, Moderat, Car Seat Headrest, Ty Segall e dos portugueses Linda Martini. Lá estaremos.
Artigo corrigido às 15h30. A última vez que PJ Harvey tocou em Portugal foi em 2011, na Aula Magna.