Chove. Mesmo assim, milhares de emigrantes vibram na festa dos Santos Populares da Rádio Alfa, perto de Paris. A multidão dança ao som do concerto de Luís Filipe Reis, na esperança de ouvir em breve o enorme e fundamental êxito da música popular portuguesa (ou “pimba” noutras designações): “Mãe querida”. Por agora, o cantor ainda entoa a “alma gitana… festa gitana…”, quando, de repente, é interrompido pelo não menos famoso apresentador José Figueiras — outra celebridade no mundo da emigração, apresentador da SIC- Internacional. O artista, em plena performance, fato azul bebé, afasta-se para os bastidores, faz um gesto interrogativo e irritado para um dos organizadores. O que é que se estava ali a passar? Ainda não tinha percebido o que lhe estava a acontecer. Por detrás do pano estava um Presidente da República, um primeiro-ministro, uma comitiva governamental e uma série de personalidades políticas francesas. Figueiras, anunciava: “Não me canso de dizer, não tem a ver com cores políticas: temos connosco o Presidente mais popular de sempre, de todos os portugueses!…” Era quem? Uma estrela pop. Mas da política: senhoras e senhores, o professor-Marcelo-Presidente-de-Portugal.
Aplausos. Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa sobem ao palco. O presidente continua a beijocar quem lhe a aparece pela frente, é um impulso incontrolável: agora são as violoncelistas da banda de Luís Filipe Reis e restantes músicos. O primeiro a falar é António Costa. O ambiente é o mesmo de um festival de rock de verão – o palco enorme, as barracas de comida, os stands dos patrocinadores –, mas sem o ambiente próprio do rock. A música é popular ou “pimba”, o público são emigrantes de primeira e segunda geração em França, e, em vez das t-shirts de bandas indy, os participantes levam bandeiras de Portugal, camisolas da seleção e fazem pinturas na cara a verde e a vermelho. António Costa pega no microfone e anuncia: “No dia 18 estarei em Paris a inaugurar o Espaço do Cidadão, o primeiro posto onde será possível contactar com oito entidades, mais de 60 serviços que podem ser tratados aqui sem ser preciso ir a Portugal, para que seja menos difícil ser português fora de Portugal”. Aplausos. O momento, porém, era de Marcelo. O palco era dele . E ele aproveitou.
O presidente “popstar” sobe ao palco
Chove ainda mais. António Costa apresenta o “Presidente de todos os portugueses”. Marcelo Rebelo de Sousa avança. Pega no microfone e toma conta da situação: “Está a chover, mas eu fico aqui para mostrar que o Presidente não tem medo da chuva”. Devia ter sido um segurança. Podia ter sido um assessor. Mas não. Foi o próprio primeiro-ministro que pegou num guarda-chuva e que se foi pôr ao lado do Presidente da República — qual deles mais divertido com a situação — a protegê-lo da intempérie (sabendo que em breve todo o país ia ver este momento original pela televisão). Marcelo aproveitou para dar mais um show de política espetáculo ao seu estilo:
Estão a ver o que é a colaboração entre os dois poderes? Vejam bem: quem tem o guarda-chuva é um primeiro-ministro de esquerda, e quem é apoiado é um presidente que vem da direita. É solidariedade”, disse Marcelo Rebelo de Sousa.
Era a cooperação institucional costuma funcionar ao contrário: os primeiros-ministros é que procuram a cobertura dos Presidentes. Neste caso parecia que António Costa é que era o ajudante-de-campo presidencial. A dar cobertura ao Chefe de Estado.
Marcelo, rápido na leitura do terreno político, procurou criar laços com o público, um espaço comum com aquela audiência. Começou então por lembrar que a sua também é uma família de emigrantes. Desde o século XIX: “O meu avô partiu de Celorico de Basto para o Brasil”. Depois foi para Angola. O seu pai também se refugiou no Brasil (a seguir ao 25 de abril); o irmão mais novo (Pedro) passou anos fora de Portugal; o irmão meio (António) viveu longe do país; e até o filho trabalhou pela Europa e agora vive com todos os seus netos no Brasil. Estava criada uma narrativa. Marcelo também era um deles e, feita a cumplicidade, era hora de os elogiar: “A nossa pátria fez-se assim, não porque não houvesse bons governantes e bons líderes, mas porque o povo era o melhor do mundo. Foi o povo que fez Portugal e a pátria que somos. O melhor que temos é o povo, não é que os políticos não sejam bons, mas o povo é melhor do que os políticos”.
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O povo é melhor do que os políticos. Marcelo revisitava ali o discurso do 10 de junho em que afirmara que o povo português tinha sido ao longo da História melhor do que as elites. Foi aplaudido. Costa riu-se. O ministro da Defesa, Azeredo Lopes, tirava fotografias com o telemóvel. Marcelo fechou com chave de ouro: “Como disse o sr. Primeiro-ministro, vamos apoiar a nossa equipa [aplausos], mas vamos apoiar a equipa que é o nosso país, a equipa de todos”.
Marcelo saiu de cena. Voltou então o artista a dar música. Com a populaça ao rubro com o presidente-celebridade, era o momento de tocar o êxito mais aguardado da tarde: “Mãe querida, mããe queriiiida…” O presidente retirou-se pelas traseiras. Passou pelos camarins de Pólo Norte, do próprio Luís Filipe Reis, de Johnny e de outros artistas populares nas comunidades portuguesas. E seguiu para almoçar na tenda VIP.
O Presidente da República chegara à festa da Rádio Alfa ligeiramente atrasado. “Onde está o senhor-primeiro ministro?”, perguntava, recém-chegado e envolvido por personalidades locais, presidentes de câmara, senadores, embaixadores. Explicava-se: “A Igreja foi fatal como o destino: eram muitos, e para conseguir sair dali…”, demorou o seu tempo, comentava Marcelo Rebelo de Sousa para todos quantos o cercavam. Tinha ido à missa, este domingo de manhã, na Igreja de Nossa Senhora de Fátima em Paris logo depois da visita à delegação da Fundação Gulbenkian. Atrasou-se porque, quando acabou a celebração religiosa, ainda teve que distribuir beijos e abraços pelos portugueses que lá estavam, antes de se dirigir à festa mais popular da comunidade na região de Paris.
A festa da Rádio Alfa, propriedade de Armando Lopes, um empresário e emigrante das primeiras vagas — que no dia anterior teve direito ao nome numa rotunda e a placa descerrada pelo primeiro-ministro e pelo Presidente –, é um dos maiores eventos da comunidade portuguesa em França. Há um ano – antes de ser primeiro-ministro, António Costa prometeu ali naquele mesmo evento que estaria presente na festa em 10 de junho de 2016. Cumpriu. Terá sido Costa a ter a ideia e Marcelo a apoiar e a desenvolver, embora também o Presidente reclame que prometeu comemorar o Dia de Portugal nas comunidades, fora de fronteiras. “Telefonei ao presidente e tive uma reunião com ele em Belém, quando ele disse que o 10 de junho era em França”, contou Armando Lopes ao Observador.
A seguir, foi um festival de beijinhos e selfies e afagos e afetos, e comentários inesperados de Marcelo Rebelo de Sousa, esmagado entre povo, seguranças, jornalistas e entidades oficiais. António Costa fazia um percurso um pouco mais ao largo, um pouco mais distante dos apertos marcelistas. Também dava beijos, apertos de mão, não recusava fotos nem selfies, mas era em tudo menos efusivo. Posso tirar uma foto? “Sim, claro”. E posava. E tirava a foto. “Obrigado”, agradecia. Sorrisos e simpatia. Mas nada de excessos. Até onde chegará esta coabitação?