Mario Vargas Llosa não tem nada a ver com Portugal. É um escritor dos bons, mas é peruano. A partida arranca e bastam uns cinco minutos, talvez nem tantos, para me lembrar do que, por coincidência, leio dele no mesmo dia. Uma vez explicou como no país dele há um desporto nacional que não é futebol, chama-se Mecer. Escreve ele que é a arte em que se mantém alguém “na indefinição ou no engano” durante muito tempo, não a ser bruto ou malcriado, mas — e aqui é que está o truque — de forma “amável ou até afetuosa”. É o que em bom português chamaríamos de um bom malandro. E lembro-me de Vargas Llosa por causa de Fernando Santos, do que ele diz antes do jogo e da maneira como as coisas começam no Parque dos Príncipes.
É algures neste estádio, lá em baixo, nas catacumbas, que no dia anterior avisa que “revolução foi em 74”. Manda a piada, ri-se depois, seduz quem o ouve no engano. A seleção tem de vencer a Áustria porque empatou com a Islândia e o selecionador, salvo umas pernas que precisam de ser refrescadas, diz que não vai mudar grande coisa na equipa. Mas os primeiros toques na bola da partida fazem Vargas Llosa inquietar-se no Peru, só pode. Em 20 jogos que Fernando Santos faz na seleção, não há um em que a equipa não comece a jogar no tal 4-4-2 que disfarça a falta de avançados e é amigo da abundância de médios com toque de bola. Neste não.
Porque há Nani e Ronaldo e também há Quaresma, que faz com que não haja João Mário e deixe de haver um losango de homens a meio campo. Portugal joga com três na frente e consegue ter várias coisas que não teve contra os islandeses. Aqueles três mexem-se muito e desmarcam-se, fogem dos adversários, não se dão à marcação. A bola chega-lhes muito pelos pés de André Gomes, que arrisca nos passes rasteiros e para a frente, que são a melhor finta que há por tirarem adversários da jogada só através da bola. E depois há William, com quem a equipa consegue tirar os austríacos da toca com os passes curtos e longos que ele não falha (acerta 36 em 36 até ao intervalo).
Os austríacos sentem-se enganados, de certeza. Não descortinam as jogadas e as tabelas e os toca-e-vai que a seleção faz até cruzar a bola para a área. Ronaldo e Nani rematam duas vezes cada, um do capitão sai frouxo nas barbas do guarda-redes Almer, um do extremo vai contra o poste esquerdo da baliza. Portugal joga bem e bonito, ou é “amável e afeituoso” para quem vê, como diz Vargas Llosa. A seleção e Fernando Santos meceiam bem, portanto. À meia hora já é a equipa com mais remates feitos no Europeu, mesmo com uma hora jogada a menos que os outros. Mas ao intervalo continua a só ter mais golos na competição do que a Albânia e a Ucrânia, que não marcaram nenhum.
Estes quase o fazem no único remate perigoso que têm (40’), no livre que Alaba bate à beira da área, na direita, que não entra na baliza por Vieirinha pôr a cabeça no balázio. A seleção fazia tudo bem, trocava muitos passes, chegava à área contrária em todas as jogadas, os atacantes tinham muita bola, aparecia gente entre as linhas dos austríacos, era tudo bonito. Contava um conto à Áustria e “dourava a pílula”, como dizia Vargas Llosa. E com razão, porque embeleza tudo menos a única coisa feia, que é logo a mais importante — não marca golos.
Mas Fernando Santos nada muda e o jogo continua o mesmo. A segunda parte arranca com os austríacos a quererem acordar. Ilkander toca o despertador com um remate forte e a meia altura (46’) que obriga Rui Patrício à única parada que faz na partida. Portugal continua na mesma, ou seja, a jogar bem, com William a facilitar a vida aos outros, Quaresma a tentar encontrar Ronaldo com cruzamentos, Nani a pedir bolas nas costas dos médios, Pepe e Ricardo Carvalho a fazerem os austríacos parecer inofensivos. O adversário quase adormece pelo tão pouco que consegue fazer, mais ou menos como escreveu Vargas Llosa. Mas o futebol é um jogo com balizas.
E por muito que a seleção ataque, não consegue criar uma relação com ela. Parece mau no engate, no último passo que se dá para se meter conversa e ver se a coisa flui. Há um remate bombástico de Ronaldo em que Almer faz a parada do jogo (55’), um cabeceamento de Cristiano em que a bola vai direita ao guarda-redes (56’) e um livre do capitão em que o remate passa por cima da barra (65’). A bola não entra e a culpa é toda de Portugal. Por isso Fernando Santos pensa mais ou menos como Mario Vargas Llosa escreve — “por cansaço acaba por abandonar e desistir do que reclama ou pretende conseguir”. Muda de plano, volta ao A, tira Quaresma e põe João Mário.
A seleção volta ao que é nos primeiros 20 jogos com Fernando Santos, mas continua a mesma no jogo. Cria muito e finaliza pouco até Ronaldo cair na área enquanto a bola cruzada por Raphaël Guerreiro lá chega. É penálti e toda a gente espera que seja desta. Espera Luís Figo, de quem Cristiano iguala as quatro grandes penalidades falhadas na seleção. E espera André Gomes, que não está ativo quando a bola lhe pede uma recarga, que ele remata por cima da baliza, com o pé esquerdo.
Bolas, e agora?
Agora vê-se uma equipa igual à que acabou o jogo com a Islândia, apressada, ansiosa e a poupar no número de passes para levar a bola até à área onde Ronaldo espera por ela. Os austríacos começam a ter contra-ataques. A seleção já não os tira da toca apesar de atacar com muitos e por isso eles partem juntos de trás para a frente aos poucos com que Portugal já defende.
Mas são inofensivos, tanto quanto os portugueses, que até ao fim apenas põem Ronaldo a cabecear para golo (85’) a bola em que Guerreiro o encontra plantado em fora-de-jogo. O jogo termina empatado e Portugal acaba com dois pontos ao fim de um par de jogos. É muito pouco, tanto que a velha calculadora está de volta.
Esta é a equipa com mais remates do Europeu e com apenas um golo marcado, volto a escrever. A seleção que nem a jogar bem e a conseguir mecear a Áustria durante 70 minutos (quando Quaresma sai e João Mário entra) aproveita as muitas oportunidades que tem para marcar. Vargas Llosa suspira, algures no Peru. Talvez a arte de mecear também seja um desporto português. Isso ou um desporto que ainda está por inventar, mas cujo campo seria como o que está ali embaixo, aqui no Parque dos Príncipes, enquanto escrevo esta última frase — sem balizas.