O Alecrim em flor recende um certo aroma veranil, um ar de sazão quente e beira-mar que delicia o mundo inteiro. Alecrim em rua, porém, mais fede a mofo, poeira e celulose envelhecida, que afastam os narizes mais sensíveis mas deliciam os cérebros mais destemperados: a descer para o Cais do Sodré, apadrinhada por um Camões e um Eça que a vigiam de alto, uma tríade de alfarrabistas ocupa a esquina da rua. São três e, por força do feitio organizado do destino, dois deles são Trindade: Campos Trindade o primeiro, fundado por Tarcísio Trindade, alfarrabista eminente depois de poeta promesso – quem tem a primeira edição da História da Literatura do Saraiva pode confirmar o nome, ao lado de Saramago, apontado como grande esperança literária – e munícipe de Alcobaça. Já não é este respeitado livreiro, responsável pelo achamento do Tratado de Confissom, a receber os clientes, mas a livraria sobreviveu à passagem dinástica. Bernardo Trindade, filho do fundador, conduz a barca a um ritmo peculiar. Ares descontraídos, horários que condizem com os ares, aspecto novo, notável constância de novidades entre as estantes, preços que permitem trocos à nota mínima e umas sempre excitantes vendas especiais, temáticas na maioria das vezes, a ocupar algumas tardes de sábado por ano.

Ora, estas vendas especiais têm tanto mais interesse porquanto mais estranho é o ritmo de trabalho na Livraria Campos Trindade. Ao contrário do que é habitual, aqui poucas vezes se faz a gestão paulatina das reservas, alimentando a conta-gotas a fome insaciável dos compradores; não, aqui tanto se passam dias com as prateleiras iguais, no seu jeito de exposição meio despido – nudez que, nas estantes, provoca inversa excitação no bibliófilo à que, nas mulheres, provocaria ao mulherengo – como, de supetão, um caudal imparável de livros cobre mesas e chão, estantes e montras, sacos e caixotes. Há livros enterrados nas prateleiras de baixo – a famosa “vala comum” – que se compram a um euro, pilhas sobre as mesas e sacos em frente das prateleiras até à cintura.

A biblioteca de Miguel Esteves Cardoso, os milhares de páginas que ele condensava em página dupla no Expresso ou no Independente, os segredos que ele semanalmente desvendava, a fonte da inspiração literária, estava ali, naqueles sacos azuis

Ora, a existência de tantos sacos azuis, uns tempos antes, a cobrir todo o perímetro da loja, já prenunciava dias fartos para a clientela. Pouco depois, chegava a novidade: vinha aí, não uma venda especial, mas uma venda especialíssima. A biblioteca de Miguel Esteves Cardoso, os milhares de páginas que ele condensava em página dupla no Expresso ou no Independente, os segredos que ele semanalmente desvendava, a fonte da inspiração literária, estava ali, naqueles sacos azuis. Não a biblioteca toda, uma modesta talhada de três mil livros, que seriam vendidos de chofre no sábado e só no sábado. O plano estava decidido: sexta-feira o Bernardo barricava-se na livraria, forrava as montras a papel de jornal para ninguém perceber o que se passava por lá dentro e, durante um dia, marcaria, um a um, o preço de todos os três mil livros. Tarefa hercúlea: mesmo que trabalhasse durante vinte e quatro horas seguidas, caber-lhe-ia cento e vinte e cinco livros por hora, para avaliar e marcar no canto superior direito o preço irrisório que oferece sempre aos clientes. Tarefa hercúlea: resgata-se então Matilde Campilho a uma semana passada em Évora, para, com o Bernardo, passar o dia a esvaziar estantes, encher estantes, esvaziar sacos, encher mesas, marcar preços e engalanar a loja. É a única depositária do segredo, a única que sabe o que há naqueles sacos que moldaram a escrita do MEC. Todos nós, os outros, tentamos adivinhar.

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Um plano perfeito

Durante a semana, com os livros enfiados nos sacos, passamos a vista pela transparência do plástico esticado, para lobrigar uma pista, uma capa mestra que desvende o teor da biblioteca. Pareceu-me, na quinta-feira, vislumbrar um Anthony Burgess, e logo a imaginação dispara, coteja influências: será que o temperamento excessivo, que tanto caracteriza a Laranja Mecânica como o Miguel Esteves Cardoso dos anos oitenta, verteu para a construção da sua biblioteca? Serão milhares de livros caros, comprados a esmo, numa ambição desmedida de repassar toda a biblioteca de Babel? Haverá raridades sobre o Integralismo? Onde estarão os Becketts? Na passagem de volta, um compêndio de grego espreita de outro saco: tapará a biblioteca de Alexandria, ou apenas uma monótona secção de línguas para totós?

O pânico está instalado, nos alfarrabistas comenta-se o assunto. Aqueles que vão, os que não vão, os que planeiam cobrir-se de estrume para terem um espaço de maneio quando a enchente projectar apertá-los, os que desconfiam da sua bibliofilia; o acontecimento assume proporções Cristológicas, calvário na sexta, com jejum de livros, para a glória vespertina de sábado à tarde, entre as três e as onze.

Durmo mal, íncubas derrocadas de livros perturbam o meu sono, sonho com angústia de não ter estantes para pousar os livros do MEC, ter gasto neles todo o dinheiro e ser

A sexta-feira traz suores frios e roer de unhas aos mais necessitados. Subo a rua do Alecrim de manhã, desço-a à tarde e o papel de jornal impede mesmo a vista: apenas um cartaz a anunciar a venda dos livros do MEC, e a passagem esporádica de umas sombras: lá dentro já sabem que livros vêm: irão castigar os filósofos com preços proibitivos? Os curiosos da música serão contemplados com preços baixos? Durmo mal, íncubas derrocadas de livros perturbam o meu sono, sonho com angústia de não ter estantes para pousar os livros do MEC, ter gasto neles todo o dinheiro e ser, por isso, obrigado a usá-los como apoio uns para os outros, de maneira que não mais os possa ler.

A manhã de sábado é difícil: imagino a Anchieta deserta, os clientes hesitantes em gastar cinco euros que possam ser úteis na biblioteca do MEC. Planeio almoçar nas costas do prédio da Vista Alegre, onde o Bernardo costuma almoçar, para ver se algum pozinho de uma conversa ressalta até à minha mesa, alguma informação. Debuxo uma planta da livraria, para delinear o plano de ataque: estará a vala comum, à esquerda de quem entra, cheia? Caso esteja, mergulho directo nos livros de um euro, aproveito-me da minha altura napoleónica que facilita a visão das prateleiras do fundo. As estantes, como estarão apresentadas? Terão os livros de capa voltada para cima, ou veremos apenas as lombadas? Caso haja poucos livros por estante, com uma braçada rápida consigo açambarcá-los a todos, mesmo antes de os ver.

Almoço depressa, mas indigestamente. A carta dos vinhos lembra-me a célebre carta do Beckett, o guardanapo é de papel e papel evoca os livros, de modo que, às duas e meia, já estou na rua do alecrim para não mais sair. Pouco antes das três menos um quarto, reparo que não estou sozinho. Sentado à sombra, um cliente assíduo de alfarrabistas, que já esteve do outro lado do balcão, na Trama. Pouco a pouco, vão chegando pessoas, e vou escutando as conversas. Um amigo adiou por umas horas a viagem até Coimbra para poder ver a biblioteca MEC, um senhor adiou por dias a partida para o Oriente para ver os livros. Imagino-o, com renovada confiança, diante de Zoroastro ou das luminárias do Império Bizantino e desafiar “tente ensinar-me agora, que já comprei uma parcela da biblioteca do Miguel Esteves Cardoso”. Uma senhora fuma com elegância inusitada, deviam ser baforadas de nervos, bufos de desespero, uns quantos chegam meio envergonhados, como jogadores matutinos à porta do casino. O sol, já que nós não temos coragem de o fazer, bate na porta, como que a avisar que são horas. O jornal já não represa o olhar, pelo que conseguimos ver a Matilde aproximar-se do portão do Éden. Vai abrir, solta a cavilha na umbreira, vai abrir, a multidão hesita em aproximar-se antes de ver a porta aberta, a porta emperra. Um puxão, um esforço, tememos que ela volte para trás, que brinque com os nossos sonhos, mas o Bernardo aproxima-se e solta uma tranca.

Está aberta a venda

Atraso-me dois segundos, a vontade julga razoável e poético arriscar ser atropelado por amor a uma biblioteca, mas o instinto retrai-se à passagem de um carro. Tempo para rever o plano: aproximar-me da vala caso esteja aberta, das mesas caso não esteja. Passo a porta, esqueço o plano, vejo o primeiro livro, no vértice da mesa da entrada — um comentário às escrituras – e estendo a mão para o agarrar. Nada feito, a corrente junto da entrada é demasiado forte, quando a mão chega à mesa o que agarra é um enorme dicionário, duas pilhas à frente. Solto-o, não me interessa, mas por baixo há uma biografia do Bernard Shaw, reservo-a. Viro a cabeça, a estante cheia de teologia, escolho uns dez livros. O caudal não permite paragens, pelo que já estou na estante ao lado. Vejo as obras do Rolão Preto e pondero, erro fatal: já estão nas mãos do diabólico Duarte Branquinho.

Amaldiçoou a falta de visão que me fez não treinar equilibrismo e que me obriga a ir pousar os livros, numa pilha junto à caixa. Perco milhares de livros com esta paragem, mas também posso respirar.

Metade dos livreiros da Rua Anchieta desceu até à Livraria Campos Trindade. Não nos cumprimentamos – todos temos as mãos cheias de livros. Apanho a biografia do Heidegger pelo Hugo Ott, uns estudos sobre Wittgenstein que conseguia pagar só com uma moeda, umas obras completas de Aristóteles que conseguia pagar com uma moeda mais pequena. Amaldiçoou a falta de visão que me fez não treinar equilibrismo e que me obriga a ir pousar os livros, numa pilha junto à caixa. Perco milhares de livros com esta paragem, mas também posso respirar. A vala está tapada por alguns papéis, mas há livros a um euro espalhados pelas mesas. Uma das mesas está ocupada por discos, mas com a livraria sitiada por vorazes compradores, somos obrigados a sacrifícios estratégicos: só vejo os discos quando já tiver visto os livros.

O afastamento do centro leva-me a uma zona menos populosa. Apanho um ou outro livro, mas vejo que estou a perder tempo em zonas mal frequentadas: a zona da culinária pouco me interessa, pelo que ganho coragem para voltar ao centro, e logo pelo entroncamento mais difícil. Do lado direito, várias prateleiras com história do judaísmo obrigam-me a um halterofilismo desumano. Carrego as antiguidades judaicas, tratados sobre as origens do sionismo e, espalmado entre aquela massa, começo a temer o desfecho sinistro das multidões judaicas enlatadas nas câmaras. Afasto-me, e estou de novo onde não queria. Cheguei à baixa – que, em matéria de preços, é sempre a zona alta – com alta representação da Assírio e Alvim. Pessoa, Ruy Belo, Carlos de Oliveira, a preços que a minha modesta bolsa, apostada na quantidade, não podia comportar. Desanimo, e mais que eu desanimam os meus bíceps de intelectual, tão pouco acarinhados: tenho de voltar ao meu monte, que já me chega à cintura.

É nesta altura que vejo o Professor Rui Ramos a pedir a conta de um monte surpreendentemente pequeno. Enquanto somam, Rui Ramos volta-se para a estante à direita e descobre dois novos livros. Eu avanço, pelo mesmo lado. Passo de novo pelo judaísmo, chego à literatura portuguesa e volto-me para trás, de novo para a mesa do princípio. Apanho um estudo sobre o Tolkien e sucumbo à pressão dos preços e da cobiça: uma biografia de um Homem que não conheço, um Kipling que já tenho e uma pequena vingança, tirando aos olhos lúbricos de um jovem um livro que pouco me interessa, apenas para cobrar uma anterior situação semelhante. Começo a reparar nas bizarrias: guias de bebidas há várias, catálogos de nomes hebraicos e – salvo as mais que já tivessem sido tiradas – contei nove edições académicas do Novo Testamento. Reparo também no Professor Rui Ramos, de novo junto da mesa, com um monte que já cria músculo a quem o carrega, longe da conta que em terras distantes o Bernardo calculava. Tenho de voltar a pousar os livros e formar um segundo monte. José António Martins, o tão assíduo cliente da Rua Anchieta, que até alguns vendedores chegam a pensar que ele é mais um colega, pede com fair-play para ver os livros que escolhi. Uma rapariguita impúbere pergunta com sempre renovada desilusão por livros de banda-desenhada inexistentes e o professor Rui Ramos, em frente ao balcão, espera que lhe façam a conta definitiva.

Com o ambiente um pouco mais desanuviado, vou à caça de mais. Resgato um Walter Benjamin que já tinha visto nas mãos de outro rapaz e que, para minha fortuna, o devia ter abandonado, encontro pouca literatura francesa (um d’Ormesson e pouco mais) e vejo passar um mancebo com a fila inteirinha da Assírio e Alvim que a carteira me vetara. Começa a haver espaço nas mesas, encontro um Chesterton e um Francis Bacon e encontro novamente o professor Rui Ramos, com o João Miguel Tavares e mais um montinho para juntar à sua conta definitiva. Só a secção de culinária permanece quase intacta. Como ambos os meus montes já passam a cintura, começo a adivinhar que as minhas costas não terão igual destino. Chamo reforços, que me acudam pai, mãe e mulher. Respondem ao apelo e, enquanto espero, vou juntando mais livros.

A biblioteca consegue dar uma certa ideia da personalidade do dono: há um certo diletantismo erudito, marcadamente anglófilo, ao mesmo tempo perdido por minudências e pelas grandes questões do pensamento ocidental

Volto à teologia, apanho um estudo sobre Karl Barth, antes de seguir para a arte. É curioso como a venda está encorpada por bibliografia secundária: apanhei vários livros sobre Heidegger, sobre Wittgenstein, sobre Metafísica, mas poucos livros de Heidegger, de Wittgenstein, ou de qualquer metafísico. Mesmo parcelada, a biblioteca consegue dar uma certa ideia da personalidade do dono: há um certo diletantismo erudito, marcadamente anglófilo, ao mesmo tempo perdido por minudências e pelas grandes questões do pensamento ocidental. O engraçado da biblioteca é que estava bastante completa em assuntos muito variados: comida, filosofia, história, religião, pelo que qualquer amador, mas também qualquer profissional poderia achar livros úteis para os seus ócios ou para os seus trabalhos.

Contas à vida

Na filosofia, sobretudo na filosofia do século XX, impressionava a quantidade de edições académicas, especializadas, que se podiam encontrar. Fui guardando o que via, confiante na ajuda, mas em vão: também a ajuda, acabada de chegar, já coleccionava os seus montes consideráveis junto à mesa da entrada. Também não podia contar com a ajuda do professor Rui Ramos, que já tinha dois sacos e continuava a juntar livros à sua conta definitiva.

A devastação guerreira cobria a livraria. Já se misturavam as secções, para baralhar as hostes adversárias, mas os livros batiam-se bem. A cada novo olhar pareciam surgir livros novos, com renovado interesse e vigor. Tirei Graham Greene da companhia judaica, tirei uma multidão do caminho para chegar à segunda biografia do Bernard Shaw, sofri com a humidade que pespegava as páginas da escrítica pop e comecei a ensacar os livros: 9 sacos junto à entrada. Pronto para sair, tive de voltar ao terreno, porque também a ajuda que eu chamara uma hora antes soçobrava diante das sereias livrescas que nos atraíam para a ruína. De volta à liça, já estafado, optei por enfrentar apenas os adversários mais fracos: só comprar livros a um euro – que mesmo assim medravam de qualquer buraco – o que juntou mais uns dez livros aos meus já dez sacos.

Desde a abertura, tinham-se passado duas horas. O Bernardo planeava ficar até às onze mas quando, por volta das nove e meia, lhe telefonei, já pensava fechar mais cedo. Compreende-se: às cinco já eram muitos os buracos, já os restos da passagem de magotes de compradores dispunham de um espaço vital impensável ao início. Três mil livros, postos de uma vez e vendidos num dia. Às cinco, quando saí, já não eram muitos os despojos, pelo que a única curiosidade passa por saber se a hora do jantar abriu o apetite aos compradores de culinária. O MEC, nos seus problemas, nunca escreveu sobre a biblioteca. Enquanto faço contas a uma linha de crédito que permita comprar uma nova casa para todos os livros que comprei, prevejo que nunca o venha a fazer. É que, agora, os livros do MEC passaram a ser, não os dele, mas os meus problemas.