Não está regulamentado, o Governo não quer regulamentar, mas os partos em casa são uma realidade. Há cada vez mais mulheres a contratarem a título privado enfermeiros para lhes prestarem assistência quando querem dar à luz entre as suas quatro paredes e “vai haver cada vez mais mulheres a fazê-lo”, garante o enfermeiro Vítor Varela, presidente da Mesa do Colégio da Especialidade de Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica da Ordem dos Enfermeiros.

“Vai haver um aumento do número de partos em casa por causa de um um modelo que está gasto e que ao longo dos próximos anos vai ser ultrapassado por mais pessoas. As utentes não estão contentes com o que se passa nos hospitais, com a falta de observância da vontade das grávidas e com a falta de acompanhamento pré-natal. Este modelo não cria uma relação de confiança”, afirma Vítor Varela.

Vítor Varela diz que não “se esconde na sombra”. Ele é um dos enfermeiros especialistas que trabalha para o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e que a título particular assiste a partos no domicílio. A Ordem dos Enfermeiros já afirmou ao Observador desconhecer quantos dos seus 2.598 especialistas em Saúde Materna e Obstétrica prestam este serviço. Mas Vítor Varela diz que conhece, pelo menos, 20 enfermeiros a nível nacional que o fazem. “E também há médicos a fazê-lo”, avisa. “É uma realidade que tem muitos anos. Eu ainda me lembro de ver livros de partos de enfermeiras mais velhas, que já tinham feito para cima de mil e dois mil partos ao longo da sua vida”, afirma.

Recentemente, o Tribunal de Sintra condenou uma enfermeira especialista a dois anos e quatro meses de cadeia por homicídio por negligência por um parto no domicílio que acabou, horas depois, na morte da bebé. A mesma enfermeira tinha já sido, em 2012, alvo de um processo disciplinar por causa de três outros partos a que assistiu e que também não correram bem — o que levou à sua suspensão de serviço por dois anos. Nesse ano, de 2012, a Mesa do Colégio da Especialidade de Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica da Ordem dos Enfermeiros emitiu um parecer, assinado por Vítor Varela, com várias recomendações a serem tidas em conta pelas famílias que optassem por um parto no domicílio.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Assistência pré-natal, parto e pós-parto por 1200 euros

Vítor Varela garante que nunca vai aceitar prestar apoio a uma grávida que lhe apareça de “38 ou 40 semanas”. E nunca vai fazer um serviço deste género sozinho. “Eu não faço um parto a quem não conheço. Eu pretendo que exista o seguimento do casal, saber o que eles pretendem, explicar-lhes que se houver algum problema tem que se trocar opiniões com outros especialistas ou, mesmo, recorrer ao hospital. As minhas competências terminam quando eu não posso executar as minhas funções. Ninguém trabalha sozinho! Infelizmente os enfermeiros não podem prescrever medicamentos, análises ou ecografias pelo SNS”, contesta.

Os partos em casa custam em média 1200 euros e esse valor inclui assistência pré-natal, o parto e o pós-parto. E há regras muito claras: se houver algum problema, mesmo antes do parto, recorre-se ao hospital. “Já recusei partos em casas que se encontravam longe dos hospitais”, garante.

Para o enfermeiro, que já tentou várias vezes discutir o assunto na Direção Geral de Saúde (DGS), a regulamentação dos partos em casa não se discute porque há “um lobby médico muito grande” que não o permite. Mesmo havendo enfermeiros e médicos a ganharem dinheiro a título particular com os partos em casa.

“Em Portugal não temos esta questão regulada. Tem sido uma situação conflituosa. Já tentámos abordar esta questão na DGS e as portas não se abrem. Tem havido muita renitência na discussão desta questão. Temos um modelo tradicional que tem lobbies poderosos e tem poder, simplesmente fecha-se os olhos, é como se não existisse”, diz Vítor Varela.

O enfermeiro integrou, durante dois anos, a Confederação Internacional de Parteiras e conhece a realidade internacional. “Estas limitações não existem no Reino Unido ou na Europa do Norte, em que logo na primeira consulta é perguntado à mulher se pretende fazer um parto em casa”, explica o especialista. Nos países da Europa do Sul, como em Portugal, o poder no SNS é exercido de forma “completamente diferente”. “É a classe médica é que decide”, diz.

Porque se pode lá fora e aqui não?

Em dezembro de 2014 o jornal El País foi ver como é que as mulheres dão à luz na Europa, depois de uma sentença do Tribunal dos Direitos Humanos a quem duas mulheres da República Checa recorreram — por quererem fazer um parto em casa, alegando que não havias condições no hospital. O trabalho pode ser visto aqui. O Tribunal não lhes deu razão, uma vez que o parto no domicílio é mesmo proibido pela lei checa. No entanto, dos dez relatórios apresentados pelo Estado e pelas queixosas, o tribunal concluiu que “a maioria dos estudos internacionais não sugere um maior risco dos partos domiciliares, desde que cumpridas certas condições”. Condições que passam por uma gestação de baixo risco, pelo acompanhamento por uma parteira profissional e pela garantia de assistência hospitalar próxima caso surja algum problema.

A Ordem dos Médicos, através do seu bastonário José Manuel Silva, aponta para as taxas de mortalidade infantil para negar esta possibilidade às mulheres. “Vamos copiar um sistema que tem taxas de mortalidade superiores à nossa?”, interrogou ao Observador. Segundo o Eurostat, a taxa de mortalidade infantil em Portugal é de 2,9 por cada mil crianças com menos de um ano. No Reino Unido é de 3,9 e nos Países Baixos é de 3,6.

Números que não podem ser vistos assim, aos olhos do enfermeiro Vítor Varela. É que, diz ele, mesmo em ambiente hospitalar, atualmente “60% dos partos são praticados por enfermeiros especialistas”, sem médicos presentes. Por outro lado, garante, as estatísticas não fornecem dados sobre as mortes de bebés em hospitais públicos, “porque estas estão sempre justificadas”. “Uma morte no hospital tem justificação. Uma morte em casa é crime”, acusa.

Vítor Varela lembra que atualmente o papel das enfermeiras parteiras tem sido fundamental nos cuidados primários, nas Unidades de Saúde Familiar. “São elas que falam com as mulheres e que prestam a assistência pré-natal”. O seu papel deve ser potenciado. Mais recorda que a formação destes especialistas é idêntica à das parteiras que fazem partos ao abrigo do SNS de outros países. “A diferença na formação é que nalguns países o curso é de enfermeira parteira e noutros, como em Portugal, tira-se o curso de Enfermagem e depois quatro semestres de especialização”.