O Observador convida os leitores a partilharem os registos fotográficos de férias passadas. Convidamo-lo a abrir os seus álbuns de família e contar-nos as histórias de outros Verões. Envie-nos algumas imagens acompanhadas de uma curta descrição. Escolheremos e publicaremos as melhores. Envie para verao@observador.pt

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Este conjunto pertence a um de quatro álbuns de família comprados certo domingo numa feira de velharias. Que alguém se desfaça deste género de álbuns dispensa juízos e perguntas. Na melhor das hipóteses, terá morrido a última pessoa interessada neles por laços de parentesco. Humilda pensar que o mesmo acabará por acontecer um dia com todos os nossos álbuns de família — género fotográfico ele mesmo em vias de extinção. Sempre que possível, importa por isso salvá-los das feiras, antes que estas se encarreguem de os dispersar sem remédio.

Os quatro álbuns a que estas fotografias pertencem vão sensivelmente do fim do Verão de 1946 à Primavera de 1955. Parecem descrever a vida de um casal português antes e depois do nascimento da sua primeira (e única?) filha, T., em Novembro de 1947. Pequeníssima parte da memória fotográfica das férias passadas na Praia da Rocha entre Julho e Setembro de 1954, as imagens escolhidas para esta galeria mostram um processo — propositadamente registado? — que a maior parte das famílias se esquece de capturar: aquele breve período em que uma criança aprende a nadar.

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A quem guarda memória desse tempo não passará despercebido um contraste: talvez estas sejam imagens dos anos mais felizes de uma família contra o pano de fundo assolador de um regime. A inscrição “Praia da Rocha, 1954” será sempre lida com um grão de sal.

Impedir que as imagens de uma família se dispersem é uma solidariedade menor para com os autores de um álbum. O facto de nestes álbuns todas as fotos se encontrarem numeradas, datadas e legendadas leva-me a imaginar — de modo confessadamente conveniente — que não me levariam a mal tomar a liberdade de, tendo-as salvo da dispersão, mostrar aqui algumas delas. A existir bondade na solidariedade para com os mortos, em particular, para com os mortos de terceiros (supondo que não se deita fora um álbum de vivos), reside em praticá-la na ignorância a respeito do seu carácter e das suas acções. Não é que as feiras, de certo modo, os absolvam: antes, devolvem-nos ao anonimato. Há certas coisas que nos passam despercebidas quando conhecemos os envolvidos. Não turvadas pela familiaridade pessoal, as narrativas de parentesco, ou o respaldo das relações, as acções das pessoas aparecem-nos, deste ponto de vista do anonimato, perpassadas de humanidade.

Ou antes: o ponto de vista do anonimato desoculta um sentido de semelhança e humanidade que a proximidade familiar, pessoal ou histórica muitas vezes nos impede de apreender. Esta é uma das razões que torna tão tocante e de longo alcance as imagens dos grandes fotógrafos. Trata-se de um ponto de vista, embora ainda histórico, com um pé fora da história, quase “historico-natural”, para usar uma expressão do filósofo americano Michael Thompson. (Quase.) Sob esse ponto de vista, são agora álbuns de ‘família’ entendida como um conjunto humano elementar, apresentado nalgumas das suas funções naturais numa dada fatia de tempo-espaço. Nesse momento, as férias em família afigurar-se-iam — que ilusão! — como uma tarefa natural da espécie humana: uma simples tarefa natural realizada em certa estação do ano, como a desova das tartarugas, ou a migração dos flamingos.

Estando por perto da Praia da Rocha, ou de qualquer outra praia, experimente-se por instantes ver as pessoas espalhadas como simples espécie animal: um bando de tartarugas, leões-marinhos, ou pinguins, realizando (de maneiras inusitadas) uma simples função natural. O que há de errado com este ponto de vista, no fim de contas? Não demoraremos muito tempo a compreender o que nele existe, senão de errado, de incompleto, se compararmos a Praia da Rocha de 1954 com a Praia da Rocha de 2016. Vemos um país que mudou. Algumas pessoas vêm a mudança com pena; outras, vêm-na sem qualquer pena. Peculiar reacção, a de fotografias de estranhos indicarem a maneira como nos orientamos em relação ao presente.

Estas fotografias de 1954 lembram-nos que certos movimentos colectivos — que tomamos como a ordem natural das estações — têm explicações históricas; são, desse ponto de vista, um retrato favorável do presente, desde que as consigamos ver sem os antolhos da nostalgia e do pitoresco. No entanto, o ponto de vista histórico e da pertença pode, também ele, cegar. Com um pé fora da história, o ponto de vista do anonimato desoculta uma humanidade e semelhança ainda aquém da etnografia. Pode ser que a luz que atravessa estas fotografias seja não apenas a luz incidente algarvia, mas também a da devoção de um casal por uma filha de seis anos. Aprender a nadar é como aprender a caminhar, excepto que não é tarefa natural de qualquer ser humano. Quando as ensinamos a nadar, ensinamos as nossas crianças a transcender as prerrogativas da sua pertença a uma espécie. Num sentido, aprender a nadar é entrar para uma civilização. Não sabemos se é a mãe ou o pai — ou uma tia — quem segura a câmara ao longo daquele Verão; o mais provável é terem sido todos eles, em estado de graça, documentando cada instante trivial deste processo, e o aborrecimento das férias, e a graça delicada de uma transição.

Caso esteja viva, T. terá hoje 69 anos.