Os secretários de Estado dos Assuntos Fiscais, Rocha Andrade, da Indústria, João Vasconcelos, e da Internacionalização, Jorge Costa Oliveira, terão de pedir escusa de participar em qualquer processo ou procedimento administrativo que envolva a Galp, nos termos do Código do Procedimento Administrativo. Se o não fizerem, qualquer interessado poder requerer a sua suspeição, explicaram ao Observador juristas que estudaram as alterações introduzidas naquela lei em 2015.
Estas normas do Código do Procedimento Administrativo podem fragilizar a situação destes três secretários de Estado: o dos Assuntos Fiscais, por causa do contencioso que existe com a Galp em que o Estado é representado por um organismo que ele próprio tutela; o da Indústria, já que a Galp é a maior empresa industrial portuguesa; e o da Internacionalização, por ser uma empresa com forte implantação no estrangeiro, e por ter a tutela da AICEP.
De acordo com os juristas ouvidos pelo Observador a gravidade do comportamento destes membros do Governo em nada é diminuída pelo facto de agora se disponibilizarem para devolver à Galp o montante das despesas que esta fez com eles, pois esse comportamento até pode agravar a sua situação, por constituir um reconhecimento de que o seu comportamento foi incorreto.
“Concordo que há uma limitação à esfera de intervenção” dos secretários de Estado, diz Paulo Otero, professor catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa, ao Observador. Quanto ao contencioso da Galp com o Estado, o jurista diz que não há reflexos na “justiça tributária porque está fora da esfera de intervenção” de Rocha Andrade, Mas ficaria “limitado no caso de haver um acordo judicial”. Outra fragilidade apontada pelo académico é “no caso de uma empresa que tenha interesses contrários suscitar uma suspeição”. Paulo Otero, no entanto, considera mais graves os aspetos que têm a ver com a “dimensão ética” do caso.
Gonçalo Santos Machado, advogado e especialista em Direito Administrativo, diz ao Observador ser “inequívoco” que se aplica esta legislação. “Se o governante não pedir escusa” no tratamento de questões relacionadas com a Galp, “qualquer interessado pode levantar um incidente de suspeição”. Qualquer cidadão o pode fazer. “Num primeiro nível, é decidido no patamar do Governo. Mas se continuasse a dizer que não havia problema nenhum, o particular poderia intentar uma ação nos tribunais administrativos”, explica o jurista. Na opinião de Santos Machado, o secretário de Estado estaria impedido de tomar uma decisão genérica sobre o Imposto Sobre os Combustíveis, que afeta todas as empresas do setor. Teria de ser tomada a nível ministerial. Também “não poderia publicar um regulamento que tivesse por alcance evidente a Galp”.
Quando reagiu à polémica esta quinta-feira, Augusto Santos Silva, número dois do Governo e e ministro dos Negócios Estrangeiros disse que Rocha Andrade não fica fragilizado politicamente pela situação, afirmando que “o secretário de Estado não tem relação direta com o contencioso” entre o Estado e a Galp.
Novo código reforçou estes aspetos, diz Paula Teixeira da Cruz
O princípio a partir do qual decorrem as normas legais é o das “garantias de Imparcialidade”, consagradas nos artigos 44º e seguintes do Código de 1991, elaborado por uma Comissão presidida por Freitas do Amaral e acompanhada por outros catedráticos. As “garantias de imparcialidade” dirigem-se aos funcionários públicos, incluindo os membros do Governo e as normas destinam-se a prevenir situações em que esses responsáveis se devem considerar impedidos ou pedir escusa de intervir em procedimentos em que fosse legítimo duvidar da sua imparcialidade.
Mais recentemente, em 2015, entrou em vigor um novo Código do Procedimento Administrativo, redigido por uma Comissão presidida por Fausto Quadros e composta também por outros professores catedráticos de Direito Constitucional e Direito Administrativo, e magistrados. O novo Código alarga ainda mais os casos de impedimento, de escusa e de suspeição. Segundo o artigo 73º (nº 1, alínea c), por exemplo, qualquer titular de órgão ou agente da Administração Pública que tenha recebido qualquer “dádiva” de uma entidade para si, seu cônjuge, parente ou afim, tem obrigatoriamente de pedir escusa de intervir em todos os processos e procedimentos em que esteja envolvida a pessoa ou empresa que concedeu a dádiva, seja esta uma oferta monetária ou qualquer outra vantagem patrimonial.
Paula Teixeira da Cruz, a ministra da Justiça do Governo PSD/CDS que supervisionou a revisão do Código do Procedimento Administrativo, diz ao Observador que foi intencional “o reforço das garantias de isenção e imparcialidade e o alargamento de outros princípios como a criação de códigos de conduta”. A advogada e deputada do PSD concorda que os secretários de Estado “ficam impedidos” de tratar de qualquer assunto relacionado com a Galp.
Ataque às práticas dos presentes de Natal
Com proibição das dádivas, explicaram juristas ligados à elaboração do Código de 1991, pretendeu-se eliminar a prática de, nomeadamente por ocasião do Natal, a seguir ou antes de obterem uma decisão favorável, as entidades privadas oferecerem prendas de valor elevado, em viagens, antiguidades, peças de ouro e prata, e “porcelanas da Vista Alegre” a membros do Governo, presidentes de câmaras ou vereadores, funcionários das Finanças ou outros dirigentes da Administração Pública em pagamento de favores, já feitos ou esperados. Esses tratamentos de favor poderiam envolver atos ou contratos em matéria de fisco, de urbanismo, de concursos, de licenciamento industrial ou comercial.
É assim que, de acordo com a redação de 2015, qualquer responsável que não peça escusa depois de ter recebido uma oferta corre o risco de ver ser levantado um processo por suspeição. É isso mesmo que estabelece o 73º (nº 2), do Código de 2015. Sendo que o artigo 76º do mesmo Código fixa as “sanções” para o desrespeito dessas garantias, estabelecendo que são nulos todos os atos e contratos em que o funcionário ou responsável político ou administrativo tenha intervindo ou venha a intervir sem ter pedido a escusa. Nessa situação terá de ser levantado um processo disciplinar, podendo o funcionário ou responsável político ter de pagar uma indemnização ao Estado ou a privados que se sintam prejudicados com o seu favorecimento a uma das partes, nomeadamente concorrentes em atos ou contratos. O sentido destas normas foi recentemente exposto num livro em que os membros da comissão que reviu o Código em 2015 explicam porque entenderam reforçar as garantias de imparcialidade.