Maria Isabel Barreno, escritora e investigadora portuguesa que ficou conhecida pelo livro Novas Cartas Portuguesas, que levou ao célebre “Caso das Três Marias”, morreu este sábado aos 77 anos. A notícia, avançada pelo Expresso, foi confirmada ao Público por uma amiga da autora.

Numa nota enviada à comunicação social, o Ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes destacou a “voz ativa” de Maria Isabel, que nasceu “num regime opressor”. “A riqueza do seu pensamento e o rigor dos seus princípios em muito contribuíram para termos hoje uma sociedade mais justa, livre e igualitária”, frisou o ministro.

Marcelo Rebelo de Sousa também já reagiu à morte da escritora. Numa mensagem publicada no site da Presidência da República, o Presidente descreveu a publicação de Novas Cartas Portuguesas, em 1972, como “um acontecimento que definiu uma época”. “Tomando de empréstimo o modelo das Cartas Portuguesas atribuídas a Mariana Alcoforado, mas discutindo o mundo português contemporâneo, o livro era a expressão de uma mudança de mentalidades e de uma resistência crítica que a censura mal pôde conter”, afirmou Marcelo.

Considerando que a obra da autora “vai muito além das Cartas”, o Presidente da República acrescentou que “os seus romances, novelas e contos procuram sempre uma forma de conhecimento da realidade portuguesa: conhecimento psicológico e sociológico, empírico e filosófico, em contexto quotidiano e doméstico ou em registo fantástico”. “E é esse conhecimento que fundamenta a recusa da dominação das mulheres e da submissão aos ‘legítimos superiores'”.

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Contactada pela Agência Lusa, Maria Teresa Horta, uma das “Três Marias”, descreveu Maria Isabel Barreno como “uma mulher excecional, inteligentíssima, muito culta e muito leal”. “E era minha amiga do coração, minha irmã.” Afirmando não ser capaz de, neste momento, “de dar uma opinião distanciada em relação à Isabel”, disse não ter “um senão” em relação à amiga e autora. “Não é só um escritor, é um escritor com quem eu escrevi, e uma pessoa quando escreve com alguém é para sempre, é eterno, não há nada a fazer. A nossa eternidade é que, pelos vistos, como se vê pela Isabel, é muito curta.”

A cerimónia de cremação está marcada para este domingo, às 17h, no cemitério dos Olivais.

Uma feroz defensora dos direitos das mulheres

Maria Isabel Barreno de Faria Martins nasceu a 10 de julho de 1939, em Lisboa, em pleno Estado Novo. Aos seis anos, por culpa de uma doença, descobriu o prazer da leitura e uma maneira de se “libertar pela palavra”. Estudou na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde se licenciou em Ciências Histórico-Filosóficas, e trabalhou no Instituto Nacional de Investigação Industrial. Foi jornalista e Conselheira Cultural para o Ensino do Português em França.

Iniciou-se na escrita ainda em jovem, começando por escrever poemas, que não mostrava a ninguém e que nunca quis publicar. Mais tarde, dedicou-se à escrita de romances, sempre marcados pela defesa dos direitos das mulheres, pelos quais foi várias vezes distinguida. Em 1991, recebeu o Prémio Fernando Namora por Crónica do Tempo e, 1993, os prémios P.E.N. Clube Português de Ficção e Camilo Castelo Branco por Os Sensos Incomuns.

Movimento de Libertação das Mulheres

Maria Isabel Barreno e Maria Teresa Horta (que segura um cartaz com a frase “Mulheres uma força política”), numa manifestação do Movimento de Libertação das Mulheres. Foto: Arquivo Global Imagens

Publicou o último romance, Vozes do Vento, em 2009, depois de uma pausa de 15 anos na escrita, durante os quais se dedicou a outras atividades artísticas, como pintura, desenho e tapeçaria. O seu último livro, o conjunto de contos Corredores Secretos, seguido de Motes e Glosas, saiu em 2010

Ao longo da sua vida, publicou mais de 24 títulos, onde se incluem contos, publicados em jornais, e trabalhos na área da Sociologia. Um dos mais importantes foi A Morte da Mãe. Publicado em 1989, o livro é um importante estudo sociológico e filosófico sobre a evolução da situação da mulher na sociedade ao longo da história.

As cartas das “Três Marias”

Apesar do seu trabalho prévio como escritora, Maria Isabel Barreno ficou sobretudo conhecida por ter escrito Novas Cartas Portuguesas, juntamente com Maria Velho da Costa e Maria Teresa Horta. Publicado em 1972, o livro parte das cartas seiscentistas da freira portuguesa Mariana Alcorofado e foi logo proibido pelo regime, que o considerou pornográfico e contrário à moral e aos bons costumes. As três autoras foram levadas a julgamento no mesmo ano, num caso que ficou conhecido como o das “Três Marias”.

“Sabíamos que a obra em si já era uma ousadia, independentemente do vocabulário que viéssemos a usar — mas era o que nos interessava escrever naquela altura e por isso fomos para diante”, lembrou Maria Isabel numa entrevista ao jornal Público em 2009. Só que as autoras nunca pensaram que o Estado Novo avançasse com um processo jurídico.

Nunca pensei que o regime — até porque estávamos em pleno marcelismo e havia a ideia de que a abertura era outra — caísse na asneira de nos levar a tribunal“, disse ao Público. “O destino mais comum dos livros era serem apreendidos, e até havia livrarias especializadas em livros proibidos. Ninguém imaginava que o regime voltasse a cometer o erro que tinha cometido anos antes com a Natália Correia”, que foi condenada a três anos de prisão, com pena suspensa, pela publicação de Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, em 1966.

Marias

Maria Isabel Barreno (ao centro), Maria Velho da Costa (à esquerda) e Maria Teresa Horta (à direita). Foto: Arquivo Global Imagens

O processo das “Três Marias” arrastou-se durante dois anos e conheceu vários advogados, como Francisco Sousa Tavares, marido de Sophia de Mello Breyner, e Salgado Zenha. Atentamente acompanhado pela imprensa nacional, gerou uma onda de indignação entre os movimentos feministas internacionais, que organizaram manifestações junto a embaixadas e consolados portugueses nas cidades de Londres, Paris e Nova Iorque.

O “Caso das Três Marias” só ficou resolvido depois do 25 de Abril. A 7 de maio de 1974, as três autoras foram finalmente absolvidas. A decisão do juiz referia que “o livro Novas Cartas Portuguesas não é pornográfico nem imoral. Pelo contrário: é obra de arte, de elevado nível, na sequência de outras obras de arte que as autoras já produziram”, cita o Expresso.

O caso ficou para a história como uma das primeiras causas feministas em Portugal e Novas Cartas Portuguesas passou a ser encarado como um tratado sobre os direitos das mulheres e como “um libelo contra todas as formas de opressão”, como o descreveu a escritora Ana Luísa Amaral, autora das notas da reedição da Sextante, de 2010.

Atualizado pela última vez às 00h00 de 4/9 com as declarações do Presidente da República